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O HOMEM-PESSOA TORNA-SE DOM NA LIBERDADE DO AMOR

1. Continuamos hoje a análise dos textos do Livro do Génesis, a que nos aplicámos segundo a linha do ensinamento de Cristo. Recordemo-nos que, na conversa sobre o matrimónio, Ele apelou para o «princípio». A revelação, e ao mesmo tempo a descoberta original do significado «esponsal» do corpo, consistem em apresentar o ser humano, homem e mulher, em toda a realidade e verdade do seu corpo e sexo («estavam nus») e ao mesmo tempo na plena liberdade de qualquer constrição do corpo e do sexo. Disto parece dar testemunho a nudez dos que foram nossos primeiros pais, interiormente livres de vergonha. Pode-se dizer que, embora criados pelo Amor, isto é, dotados no próprio ser de masculinidade e feminilidade, ambos estão «nus» porque estão livres com a liberdade mesma do dom. Esta liberdade está precisamente na base do significado esponsal do corpo. O corpo humano, com o seu sexo, e a sua masculinidade e feminilidade, visto no mistério mesmo da criação, é não só fonte de fecundidade e de procriação, como em toda a ordem natural, mas encerra desde «o princípio» o atributo «esponsal», isto é, a capacidade de exprimir o amor: exactamente aquele amor em que o homem-pessoa se torna dom e — mediante este dom — pratica o sentido mesmo do seu ser e existir. Recordamos agora o texto do último Concílio, onde se declara que o homem é a única criatura no mundo visível que Deus quis «por si mesma», acrescentando que este homem «não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo»(1). 2. A raiz da nudez original isenta de vergonha, da qual nos fala Génesis 2, 25, deve-se procurar precisamente naquela verdade completa sobre o homem. Homem e mulher, no contexto do seu «princípio» beatificante, estão livres com a mesma liberdade do dom. De facto, para poderem manter-se na relação do «dom sincero de si» e para se tornarem um tal dom um para o outro, através de toda a sua humanidade feita de feminilidade e masculinidade (também em relação com aquela perspectiva de que fala Génesis 2, 24), eles devem estar livres precisamente desta maneira. Entendemos aqui a liberdade sobretudo como domínio de si mesmos (autodomínio). Sob este aspecto, ela é indispensável para que o homem possa «dar a sua pessoa», para poder tornar-se dom, para (referindo-nos às palavras do Concílio) poder «encontrar-se plenamente» por meio de um «dom sincero de si». Assim, as palavras «estavam ambos nus mas não sentiam vergonha» podem e devem entender-se como revelação - e ao mesmo tempo descoberta — da liberdade, que torna possível e qualifica o sentido «esponsal» do corpo. 3. Génesis 2, 25 diz porém mais ainda. De facto, esta passagem indica a possibilidade e qualifica tal recíproca «experiência do corpo». E, além disso, permite-nos identificar aquele significado esponsal do corpo in actu. Quando lemos que «estavam nus mas não sentiam vergonha», tocamos indirectamente como que a raiz, e directamente já os frutos. Isentos interiormente da constrição do próprio corpo e sexo, livres na liberdade do dom, homem e mulher podiam gozar de toda a verdade, de toda a evidência humana, assim como Deus Javé lhas tinha revelado no mistério da criação. Esta verdade sobre o homem, que o texto conciliar explica com as palavras supracitadas, insiste sobretudo em duas coisas. Primeiro, afirma que o homem é a única criatura no mundo que o Criador quis «por Si mesma»; e, em segundo lugar, diz que este mesmo homem, querido desse modo pelo Criador desde o «princípio», pode encontrar-se a si mesmo só através de um dom desinteressado de si. Ora, esta verdade a respeito do homem, que em particular parece surpreender a condição original ligada ao «princípio» mesmo do homem no mistério da criação, pode ser relida — com base no texto conciliar — em ambas as direcções. Essa nova leitura ajuda-nos a compreender ainda melhor o significado esponsal do corpo, que aparece inscrito na condição original do homem e da mulher (segundo Génesis 2, 23-25) e em particular no significado da nudez original de ambos. Se, como verificámos, na raiz da nudez está a liberdade interior do dom — dom desinteressado de si mesmos —, exactamente tal dom permite a ambos, homem e mulher, encontrarem-se reciprocamente, pois o Criador quis cada um deles «por Si mesmo» (Cfr. Gaudium et Spes, 24). Assim o homem, no primeiro encontro beatificante, encontra a mulher e ela encontra-o a ele. Deste modo ele acolhe-a interiormente; acolhe-a tal como ela é querida «por Si mesma» pelo Criador, como é constituída no mistério da imagem de Deus por meio da sua feminilidade; e, reciprocamente, ela acolhe-o a ele do mesmo modo, como ele é querido «por Si mesmo» pelo Criador e por Ele constituído mediante a sua masculinidade. Nisto consiste a revelação e a descoberta do significado «esponsal» do corpo. A narrativa javista, e em particular Génesis 2, 25, permite-nos deduzir que o homem e a mulher entram no mundo exactamente com esta consciência do significado do próprio corpo, da sua masculinidade e feminilidade. 4. O corpo humano orientado interiormente pelo «dom sincero» da pessoa, revela não só a sua masculinidade e feminilidade no plano físico, mas revela também tal valor e tal beleza que ultrapassam a dimensão simplesmente física da «sexualidade» (2). Deste modo completa-se em certo sentido a consciência do significado esponsal do corpo, ligado à masculinidade-feminilidade do homem. Por um lado, este significado indica especial capacidade de exprimir o amor, em que o homem se torna dom; e, por outro, corresponde-lhe a capacidade e a profunda disponibilidade para a «afirmação da pessoa», isto é, literalmente, a capacidade de viver o facto de o outro.— a mulher para o homem e o homem para a mulher — ser, por meio do corpo, alguém querido pelo Criador «por si mesmo», isto é, único e irrepetível: alguém escolhido pelo eterno Amor. A «afirmação da pessoa» não é senão acolhimento do dom, que, mediante a reciprocidade, cria a comunhão das pessoas; esta constrói-se a partir de dentro, compreendendo também toda a «exterioridade» do homem, quer dizer, tudo aquilo que forma a nudez pura e simples do corpo na sua masculinidade e feminilidade. Então — como lemos em Génesis 2, 25 — o homem e a mulher não sentem vergonha. A expressão bíblica «não sentiam» indica directamente «a experiência» como dimensão subjectiva. 5. Exactamente em tal dimensão subjectiva, como dois «eus» humanos determinados pela sua masculinidade e feminilidade, aparecem ambos, homem e mulher, no mistério do seu beatificante «princípio». (Encontramo-nos no estado da inocência original e, ao mesmo tempo, da felicidade original do homem). Este aparecer é breve, e é expresso somente por alguns versículos do Livro do Génesis; todavia está cheio de surpreendente conteúdo teológico e ao mesmo tempo antropológico. A revelação e a descoberta do significado esponsal do corpo explicam a felicidade original do homem e, ao mesmo tempo, abrem a perspectiva da sua história terrena, em que ele não se há-de subtrair nunca a este indispensável «tema» da própria existência. Os versículos seguintes do Livro do Génesis, segundo o texto javista do capítulo 3.°, demonstram, para dizer a verdade, que esta perspectiva «histórica» (depois do pecado original), se construirá de modo diverso do que era no «princípio», beatificante. Tanto mais profundamente é por isso necessário penetrar na estrutura misteriosa, teológica e ao mesmo tempo antropológica, de tal «princípio». De facto, em toda a perspectiva da própria «história», o homem não deixará de conferir significado esponsal ao próprio corpo. Embora este significado sofra e venha a sofrer muitas deformações, manter-se-á sempre o nível mais profundo, que exige ser sempre revelado em toda a sua simplicidade e pureza, e manifestar-se em toda a sua verdade, como sinal da «imagem de Deus». Por aqui passa também o caminho que leva do mistério da criação à «redenção do corpo» (Cfr. Rom. 8). Permanecendo, por agora, no limiar desta perspectiva histórica, damo-nos claramente conta, baseados em Génesis 2, 23-25, do mesmo laço que existe entre a revelação e a descoberta do significado esponsal do corpo e a felicidade original do homem. Esse significado «esponsal» é também beatificante e, como tal, manifesta definitivamente toda a realidade daquela doação, de que nos falam as primeiras páginas do Livro do Génesis. A leitura delas convence-nos de a consciência do significado do corpo que dela deriva — em particular do seu significado «esponsal» — constituir o elemento fundamental da existência humana no mundo. Este significado «esponsal» do corpo humano só se pode compreender no contexto da pessoa. O corpo tem significado «esponsal» porque o homem-pessoa, como diz o Concílio, é criatura que Deus quis por si mesma, a qual, ao mesmo tempo, não pode encontrar-se plenamente senão mediante o dom de si mesma. Se Cristo revelou ao homem e à mulher, acima da vocação do matrimónio, outra vocação — a de renunciar ao matrimónio em vista do Reino dos Céus — com esta vocação pôs em relevo a mesma verdade sobre a pessoa humana. Se um homem ou uma mulher é capaz de fazer dom de si pelo Reino dos Céus, isto prova por sua vez (e porventura até mais ainda) que há a liberdade do dom do corpo humano. Quer dizer que este corpo possui pleno significado «esponsal».

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