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A coragem de se interrogar acerca da verdade

"Graça e paz vos sejam dadas da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo" (Fl 1, 2).
1. Com estas palavras de São Paulo e em nome do Pontifício Conselho para os Leigos, saúdo com profunda cordialidade todos vós caríssimos amigos que participais nestes dias no oitavo Foro Internacional dos Jovens sobre o tema: "Os jovens e a universidade: testemunhar Cristo no ambiente universitário". (...) (...)
3. Durante este Foro colocaremos no centro da nossa reflexão a universidade, uma instituição de grande importância para a vida do homem e da sociedade. Porque universidade significa cultura, e a cultura é uma componente indispensável de uma vida plenamente humana. João Paulo II afirma com vigor que "o homem vive uma vida verdadeiramente humana graças à cultura. A vida humana é cultura no sentido também de que o homem se distingue e se diferencia através dela de tudo o que existe no mundo visível: o homem não pode existir fora da cultura [...]. A cultura é aquilo pelo qual o homem, enquanto homem, se torna mais homem, "é" mais, tem mais acesso ao ser" (1). E as universidades são verdadeiras "geradoras" de cultura nas suas várias expressões, lugares de grande irradiação da cultura. Deve-se a isto a sua insubstituível função. Contudo, no nosso tempo registra-se para a cultura uma crise grave e difundida. Muitos falam de uma humanidade que se encontra numa encruzilhada e não faltam análises críticas. Menciono uma, que me parece particularmente apropriada: "[A humanidade de hoje] navega no "pluralismo sem fronteiras", exposta a todos os ventos, disposta a vender-se a quem oferece menos. Nunca a diversidade foi uma culpa tão assustadora como neste período de tolerância" (Pasolini). Do fascínio do "futuro luminoso" à atracção do vazio [...]. Depois do cavalo vermelho da revolução [marxista-comunista], seguido do cavalo negro da repressão, triunfará o cavalo cinzento do nihilismo. O círculo está fechado. A revolução violenta deu os seus frutos. A exaltação da mentira revelou o seu verdadeiro rosto. A utopia não se verificou, como qualquer ideologia, no seu contrário. Mas também noutro binário o comboio terminou a sua corrida: o iluminismo apagou-se e o racionalismo perdeu a razão. Viajando em direcções contrárias chegaram à mesma estação, ao nihilismo"(2). É o retrato de uma cultura esvaziada de valores, secularizada, que encerra hermeticamente o homem na imanência e o sufoca. Gabriel Marcel dizia que sem o mistério a vida torna-se irrespirável. E hoje experimentamos isto de mil maneiras. Eis onde afunda as suas raízes a crise do homem pós-moderno. Felizmente, este quadro de sombras é atenuado por muitos sinais que deixam entrever um renascimento de valores espirituais na cultura de hoje e isto deve ajudar-nos sobretudo a nós cristãos a não nos deixarmos tentar pelo pessimismo, a sermos como nunca portadores de esperança. 4. A crise da cultura reflecte-se necessária e fortemente na universidade, a qual está a viver um período de profundas transformações e procura uma nova identidade um processo delicado e complexo que fazemos votos por que desemboque num crescimento. Falaremos muito da crise da universidade durante o nosso Foro. Muitos afirmam que "a crise da universidade não é, em primeiro lugar, de tipo organizativo e institucional, mas espiritual e cultural. [Que], por outras palavras, é a universidade que está em crise enquanto instituição educativa e cultural, como lugar de produção do saber quer teórico quer prático"(3). Um dado de facto que tem consequências concretas, que os professores e os estudantes conhecem bem. Uma em particular suscita preocupação. Na universidade já não se fala do homem, já não se formula a pergunta acerca do homem, não se dedica espaço para se interrogar criticamente sobre a própria identidade de pessoas. Uma aceleração sem precedentes do progresso científico, a multiplicação das especialidades com a consequente fragmentação do saber, a parcialidade contraditória das respostas oferecidas pela ciência moderna geram desorientação existencial e cultural entre os jovens e não só entre os jovens. O pensamento frágil, que se difunde rapidamente proclamando os dogmas da dúvida, do cepticismo e do relativismo radicais, produz personalidades frágeis, homens e mulheres que desistem da procura da verdade. Aumenta a diferença entre ética e pesquisa científica, aumenta o risco que a ciência, em vez de ser aliada do homem, se transforme numa ameaça para toda a humanidade. Na era da globalização as leis do mercado são válidas também para a universidade e, sobretudo, não poupam a investigação científica da qual se tornam, com frequência, factor determinante. E ela, ao produzir o saber, é cada vez mais condicionada pelas exigências do mercado, com todos os resultados ocasionais. O primeiro de todos é a transformação do homem de sujeito responsável em objecto irrelevante de manipulações de todos os tipos. Os sintomas da grave crise na qual a universidade se debate são evidentes. Mas como sair desta situação? Dado que não viemos aqui só para recriminar, é uma pergunta que devemos fazer. É opinião partilhada que se existe uma saída, ela consiste na redescoberta da dimensão sapiencial do conhecimento e da ciência. O Concílio Vaticano II diz: "A nossa época, mais do que nos séculos passados, precisa deste saber, para que todas as novas descobertas se tornem mais humanas. De facto, o futuro do mundo está em perigo, a não ser que sejam suscitados homens mais sábios"(4). Por conseguinte, há necessidade de muitos homens e mulheres, de muitos jovens que tenham a coragem de se interrogar acerca da verdade (também acerca da última e absoluta) e acerca do sentido (também do último e definitivo!). É necessário redescobrir a vocação originária da universidade, como "diaconia do pensamento", "diaconia da verdade" e "diaconia do saber". 5. Depois de ter aprofundado a situação da universidade dos nossos dias, que tracei apenas em linhas gerais, o Foro procederá a uma análise da condição dos jovens no ambiente universitário. Como se situam os jovens dos diversos Países e continentes num mundo tão complexo? Que significa para eles o tempo dos estudos? Que sentido dão, sobretudo como cristãos, a este importante período da própria vida?
(...) Há vários anos, ao falar a este propósito aos universitários de Roma, o Papa disse: "À formação científica... é necessário acrescentar uma profunda formação moral e cristã, que seja intimamente vivida e que realize uma síntese cada vez mais harmoniosa entre fé e razão, entre fé e cultura, entre fé e vida. Unir ao mesmo tempo dedicação, pesquisa científica rigorosa e testemunho de uma vida cristã autêntica: eis o compromisso entusiasmante de todos os estudantes universitários"(5). Condição fundamental deste processo educativo, e de qualquer processo educativo, é a visão integral da pessoa.
(...)
Outro objectivo prioritário na vida dos estudantes cristãos deve ser o restabelecimento da harmonia entre a própria fé e a própria razão. Fé e razão não são inimigas, mas duas grandes aliadas que concorrem para a mesma meta, como explica minuciosamente João Paulo II na Fides et ratio, um vademecum, neste sentido, verdadeiramente precioso. Um provérbio antigo diz: fides quaerens intellectum et intellectus quaerens fidem (a fé procura a razão e a razão procura a fé). E o Cardeal Joseph Ratzinger escreve que "a fé fala à nossa razão porque dá voz à verdade. Sob este ponto de vista uma fé sem razão não é autêntica fé cristã"(7). Como é importante, nos nossos dias, recuperar a noção do bom senso da fé! Quanta necessidade há no nosso mundo da audácia de uma razão aberta ao mistério!
(...)
"Considero verdadeiramente que nós temos necessidade de uma espécie de revolução da fé em sentido múltiplo. Antes de mais, precisamos dela para reencontrar a ousadia de ir contra as opiniões comuns [...]. Por isso devemos ter a coragem de nos pormos a caminho, mesmo contra aquilo que é visto como "normalidade" para o homem do final do século XX, e de redescobrir a fé na sua simplicidade"(9).
Leia todo o discurso aqui.
PONTIFÍCIO CONSELHO PARA OS LEIGOS
VIII FORO DOS JOVENS
31 de Março de 2004
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