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AGOSTINHO E O CONHECIMENTO DO MUNDO SENSÍVEL


POR QUE AGOSTINHO TERIA DEFENDIDO GALILEU DIANTE DA INQUISIÇÃO

O Doctor gratiae e o conhecimento do mundo sensível
Entrevista com padre Nello Cipriani, professor ordinário do Instituto Patrístico Augustinianum: “Em Agostinho, a idéia de que podemos ter conhecimento seguro do mundo exterior não é uma afirmação abstrata. Para ele, ela tem validade mesmo quando se trata de estabelecer a relação entre o ensino que vem da Escritura e as conquistas das ciências naturais”


Entrevista com Nello Cipriani de Lorenzo Cappelletti

Retomamos um diálogo, que na realidade só se interrompeu no papel, com padre Nello Cipriani, agostiniano, consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, professor catedrático do Instituto Patrístico Augustinianum, fundado em Roma por Paulo VI. Padre Cipriani discorreu várias vezes nas páginas de 30Dias, a partir da década de 1990, sobre a atualidade do pensamento de Santo Agostinho. Nós o reencontramos solicitados, por um lado, por um debate sobre a relação entre fé e ciência, que, nestes últimos tempos, parece ter-se tornado mais áspero; por outro lado, por novas pesquisas de padre Cipriani que, precisamente nesse âmbito, podem trazer uma contribuição de clareza e distensão.

Qual é o objeto de suas pesquisas mais recentes?

NELLO CIPRIANI: Nos últimos tempos, tenho-me ocupado da epistemologia de Santo Agostinho, ou seja, quis investigar como ele entendeu a palavra scientia. Percebi que nos primeiros anos depois da sua conversão ele ainda entendia esse termo no sentido que tinha na tradição platônica e aristotélica. Entendia scientia como o conhecimento racional das realidades inteligíveis eternas e imutáveis, objeto da especulação metafísica e matemática, Deus em primeiro lugar. Graças a esse conceito muito intelectual de scientia, portanto, excluía-se o conhecimento das coisas contingentes, as que acontecem no tempo, como também o conhecimento do mundo sensível. Mas, no período do presbiterato, Santo Agostinho promove uma verdadeira virada epistemológica, pois descobre uma segunda scientia: o estudo da Escritura, degrau indispensável para se chegar à scientia das coisas eternas. Essa descoberta é fruto da leitura de uma passagem de São Paulo que fala do dom da ciência distinto do dom da sabedoria. Assim, no De doctrina christiana a ciência se torna sobretudo o estudo aprofundado da Escritura conduzido com um método que se inspira em critérios científicos. Essa é já uma grande novidade epistemológica. Mas em seguida, no De Trinitate (sobretudo nos livros XII e XIII), Santo Agostinho chega a distinguir de maneira ainda mais profunda a ciência da sabedoria. A ciência já não é mais somente o conhecimento do que aconteceu no tempo, ou seja, da história da salvação e da moral cristã, ambas contidas na Escritura, mas inclui a fé temporal, histórica, da Igreja em Deus e nos bens eternos. Nesse conceito de ciência, o objeto se torna ainda mais amplo: tudo o que é temporal e que interessa à fé. A tarefa dessa scientia, que nem todos necessariamente devem ter, é sustentar a fé dos que crêem pela defesa contra as heresias.

Que interesse pode ter essa sua descoberta em relação ao percurso epistemológico de Santo Agostinho?

CIPRIANI: A coisa é interessante porque, para os grandes filósofos gregos, como Platão e Aristóteles, aquilo que acontece no tempo não pertencia ao episteme, ou seja, à ciência, ao passo que, para Agostinho, como eu disse, a scientia se interessa pelas res temporales, pelos fatos históricos, e também por todos os fenômenos naturais. Acontece que, quando se fala de Agostinho, muito freqüentemente se acrescenta a seu nome o atributo “platônico”. Agostinho teria uma total dependência do platonismo. Na realidade, Platão não tinha grande estima pelo conhecimento sensível, considerava-o uma doxa, uma opinião, não lhe atribuía a capacidade de fornecer conhecimentos seguros. Agostinho, por sua vez, já no De vera religione, diz explicitamente que os sentidos não enganam, e, em seguida, no De Trinitate, de maneira igualmente explícita, acrescenta: longe de nós afirmar que as coisas que conhecemos por meio dos sentidos não são verdadeiras. Exatamente o contrário de Platão. Além disso, em Santo Agostinho, a idéia de que podemos ter conhecimento seguro do mundo exterior não é uma afirmação abstrata. Para ele, ela tem validade mesmo quando se trata de estabelecer a relação entre o ensino que vem da Escritura e as conquistas das ciências naturais. Isso se afirma sobretudo no De Genesi ad litteram, em que Santo Agostinho chama temerário o cristão que leva ao pé da letra uma expressão bíblica assumindo uma posição contrária aos resultados alcançados com certeza pelos cientistas de seu tempo. De fato, Agostinho afirma que a Escritura não pretende nos ensinar como o mundo é feito, ou seja, não pretende dar uma explicação científica dos fenômenos naturais, mas, em vez disso, quer nos ensinar o caminho da salvação. E ainda, no De Genesi ad litteram, Santo Agostinho não apenas reconhece que os escritores sacros não têm intenção de pronunciar-se sobre como é feito o mundo, mas afirma mesmo que os cientistas podem, por meio de cálculos e experimentos, chegar a resultados absolutamente certos, que devem ser aceitos por quem é cristão, sem ser contrapostos à Escritura. Desde que tais resultados científicos sejam realmente certos, alcançados por meio de um método sério.

Se tivessem dado ouvidos a Agostinho, o famoso caso Galileu não teria existido.

CIPRIANI: Seguramente. O próprio Galileu, numa carta de 1615, cita Santo Agostinho nada menos de quinze vezes para afirmar, de um lado, a sua fé e, de outro, a sua liberdade como cientista. Foi um erro gravíssimo ter feito a Escritura dizer aquilo que ela absolutamente não diz. Não é a Escritura que é contrária à ciência. Foi muito mais uma maneira de interpretar a Escritura submissa à cultura daquele tempo que impediu que a Igreja de então se orientasse pelo ensinamento de Agostinho. A possibilidade de evitar o conflito entre Galileu e a Inquisição existia; bastava que tivessem levado em conta o ensinamento de Agostinho, que já havia reconhecido a autonomia da ciência muitos séculos antes.

Esse Galileu agostiniano é muito interessante.

CIPRIANI: A reflexão desenvolvida por Santo Agostinho sobre o conceito de scientia, que atravessa toda a sua reflexão filosófica e teológica, leva-o a resultados que só serão recuperados muitos séculos depois: primeiramente por Santo Tomás, no que diz respeito à teologia (para definir o objeto e a finalidade da teologia, Santo Tomás, no início da Summa, retomou o conceito de scientia de Agostinho); depois, por Galileu, no que diz respeito às ciências naturais. Santo Agostinho às costas da personificação da virtude da Verdadeira Religião


Pelo que o senhor diz, parece que Santo Agostinho, ao excluir uma contraposição entre a ciência e a Escritura, antecipou o que comumente consideramos uma conquista da moderna investigação exegética. Como foi possível uma antecipação tão grandiosa por parte de Agostinho?

CIPRIANI: Santo Agostinho certamente chegou a esse resultado graças a sua reflexão sempre muito atenta ao que a Escritura ensina. Mas há também um elemento importante que vem da sua experiência pessoal. Santo Agostinho foi maniqueísta durante nove anos. Depois progressivamente se distanciou (como escreve no livro V das Confissões), justamente em razão da decepção que se produziu nele ao constatar que o ensinamento maniqueísta, que pretendia dar uma explicação certa e verdadeira de tudo, até dos fenômenos naturais, na realidade estava em contradição com o ensinamento dos físicos, sobretudo ao explicar os eclipses da lua e do sol. De fato, os maniqueístas interpretavam esses fenômenos à luz da mítica luta entre o bem e o mal, que estava no centro da sua religião. Mas Agostinho havia percebido (ele diz que leu todos os livros que pôde encontrar sobre esses temas) que as explicações dadas pelos físicos, completamente diferentes, encontravam confirmação nos fatos. Efetivamente, os físicos tinham sido capazes de prever com muitos anos de antecedência os eclipses da lua e do sol. Foi a constatação do erro dos maniqueístas, ao quererem explicar os fenômenos naturais por meio do mito religioso, que pôs Agostinho em alerta para que a mesma coisa não acontecesse aos cristãos. Portanto, quando lê a Escritura, Santo Agostinho quer preservá-la dessa queda de credibilidade, preocupando-se em distinguir o que a Escritura quer do que não quer ensinar.

O desenvolvimento das ciências naturais foi favorecido por essa crítica da postura mítica, por essa demitização ante litteram, para usar a conhecida expressão de Bultmann?

CIPRIANI: Santo Agostinho reconhece a efetiva capacidade dos cientistas de alcançarem resultados certos no conhecimento do mundo, mas, dado que em seu tempo esses conhecimentos eram muito limitados, ele se mantém sempre um tanto cauteloso ante o estudo da natureza. Repete muitas vezes que esse estudo não apenas não é de grande ajuda para a salvação eterna dos fiéis, mas também não traz tantos benefícios na ordem humana. Ele se refere sobretudo a algumas ciências, como a médica, que em seu tempo haviam alcançado resultados parcos. Reconhece que a medicina, em princípio, seria útil para a saúde do homem, mas, na prática, considera pequena a sua utilidade. Enfim, em Agostinho existe a convicção da efetiva possibilidade de poder alcançar resultados certos no conhecimento do mundo exterior; mas, de outro lado, existe também um certo ceticismo quanto à utilidade desse conhecimento.


Porém, a partir do momento em que as ciências da natureza obtiveram um progresso real, não apenas em termos cognoscitivos mas também aplicativos, como se deu nas épocas moderna e contemporânea, a concepção agostiniana está à altura de acolher sem reserva esse progresso.


CIPRIANI: Acredito que poderíamos aprender com Santo Agostinho a ter mais confiança na razão humana e, portanto, também na capacidade de conhecer melhor o nosso mundo. É verdade que ele pretende se ocupar – como diz a partir dos Soliloquia – de Deus e da alma, mas desde o início, e cada vez mais no Agostinho maduro, já existe uma confiança no conhecimento do mundo exterior, conhecimento que pode até mesmo ajudar a entender melhor a Escritura. Santo Agostinho observa diversas vezes no De Genesi ad litteram que a ciência poderia nos ensinar a não tomar ao pé da letra certas expressões bíblicas. E, vice-versa, a não alegorizar os pontos em que deve valer o sentido literal.

Voltando ao tema da pretensa racionalidade dos maniqueístas, o que é que estes respondem a Santo Agostinho?

CIPRIANI: Como eu disse, Santo Agostinho conta que percebeu o conflito que havia entre o ensinamento dos cientistas e os livros maniqueístas em relação a fenômenos celestes como as revoluções das estrelas, os eclipses do sol e da lua e assim por diante. Portanto, apresentava essas dificuldades a seus amigos maniqueístas e pedia explicações, mas estes se esquivavam dizendo que seu bispo Fausto é que responderia a todas as suas dificuldades. Quando Fausto finalmente chegou a Cartago, em 383, Agostinho apresentou a ele suas dúvidas, mas o bispo reconheceu humildemente sua ignorância sobre esses temas. Em certos aspectos, Agostinho teve simpatia por ele. Apreciou sua modéstia e também sua oratória, seu estilo de bom orador, mas perdeu a confiança no maniqueísmo, que nem por intermédio das pessoas de maior autoridade moral sabia responder “a sua sede”, escreve.

Onde é que Agostinho diz isso?

CIPRIANI: No livro V das Confissões, no capítulo sexto. A decepção do jovem Agostinho perante os maniqueístas, que davam explicações dos fenômenos naturais que conflitavam com a ciência, talvez seja a mesma experimentada por muitos jovens de hoje que, tanto por seu despreparo religioso quanto pela imprudência de certos intelectuais cristãos, podem ser expostos ao perigo de achar que o ensinamento da Escritura está em conflito com as conquistas das ciências modernas e, portanto, podem alimentar uma desconfiança perante a Escritura e a própria fé cristã. Santo Agostinho é sempre atual. Ouça o trecho do De Genesi ad litteram, I, 19, 39, que mencionei antes e é citado integralmente por Galileu em sua carta de 1615 à grão-duquesa Cristina, da Toscana:

“Dá-se muitas vezes que mesmo quem não é cristão, em relação à terra, ao céu, aos outros elementos deste mundo, ao movimento e à revolução ou até à grandeza e à distância dos astros, aos eclipses do sol e da lua, ao ciclo dos anos e das estações, à natureza dos animais, das plantas, das pedras e de todas as outras coisas deste gênero, tenha conhecimentos tais a ponto de poder sustentá-los à força de razões ou experiências indiscutíveis. Portanto, é realmente uma coisa vergonhosa, danosa e que se deve evitar a qualquer custo que tais pessoas ouçam um cristão falar dessas coisas com base nos textos cristãos e dizer bobagens tamanhas que, vendo-o tomar vagalumes por lanternas, como se diz, a duras penas consigam segurar o riso. E é penoso não tanto que se zombe de alguém que erra, mas que aqueles que estão de fora possam pensar que nossos autores tenham sustentado opiniões como essas, e os reprovem e rejeitem como ignorantes, para grande dano daqueles por cuja salvação somos solícitos. De fato, quando esses que estão de fora surpreendem um cristão em erro no tocante a coisas que eles conhecem muito bem, e quando o vêem sustentando uma opinião errônea com base em nossas Escrituras, de que modo poderão dar fé a essas mesmas Escrituras no que diz respeito à ressurreição dos mortos, à esperança na vida eterna e ao reino dos céus, quando vêem essas Escrituras conterem erros relativamente a coisas que eles puderam experimentar ou conhecer a partir de cálculos seguros? É difícil exprimir quanta pena e amargura dão aos irmãos prudentes esses temerários cheios de presunção, quando, ao serem criticados e convencidos da perversa falsidade de suas opiniões por aqueles que não estão vinculados pela autoridade das nossas Escrituras, procuram alegar as mesmas sagradas Escrituras em defesa do que afirmaram com leviandade extraordinariamente temerária e aberta falsidade. E chegam mesmo a citar de memória muitas palavras que consideram valer como testemunho, ‘sem compreender nem o que dizem nem que alcance tem’”.

É significativo – acrescentamos nós ao término desta entrevista – o comentário que São João Damasceno faz a essa frase conclusiva extraída por Santo Agostinho da Primeira carta a Timóteo (1, 7), que grandes aplicações poderia ter na atualidade: “é o afã de dominar que os obriga a reivindicar para si o papel de Mestres”.

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