Fonte: RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. SP: Editora Herder, 1970
Cap. IV - "Creio em Deus" – Hoje
1. O primado do Logos
Fé cristã em Deus conota primeiramente a opção pelo Logos em confronto com a matéria pura. Dizer: "Creio que [112] Deus existe" inclui, na opção, a aceitação do Logos, isto é, do pensamento, da liberdade, do amor, não apenas no fim, mas também no início; que ele é a força original e envolvente de todo o ser. Em outras palavras: a fé denota uma escolha da idéia de que pensamento e sentido não são meros produtos ocasionais e secundários do ser, mas, antes de todo o ser, é produto do pensamento e até, em sua estrutura mais íntima, é pensamento. E neste sentido a fé significa, especificamente, uma opção pela verdade, pois, para a fé, o próprio ser é verdade, compreensibilidade, sentido, tudo isto não representando um mero produto acessório do ser, surgido alhures, sem poder ter uma importância estruturadora, normativa para a totalidade do real.
Nessa opção pela estrutura espiritual do ser, que se origina do sentido e da razão, está incluída, ao mesmo tempo, a fé na criação. Porquanto essa fé nada mais é do que a convicção de que o espírito objetivo, cuja presença constatamos em todas as coisas e ao qual até aprendemos a compreender, em medida crescente, como sendo as coisas, é imagem e expressão do espírito subjetivo; e a estrutura ideal possuída pelo ser, possível de ser conhecida, é expressão de um protopensamento criador, através do qual as coisas existem.
Digamo-lo mais exatamente: na antiga expressão pitagórica do Deus que pratica geometria, exprime-se a opinião da estrutura matemática do ser, a qual ensina a conceber o ser como pensamento, como estruturado racionalmente; revela-se o pensamento de que também a matéria não é puro non-sens a furtar-se à compreensão, mas portadora, também ela, da verdade e da compreensibilidade, que torna possível uma compreensão racional. Essa hipótese tornou-se particularmente densa em nossa época, graças à pesquisa da constituição matemática da matéria, da sua racionabilidade e aplicabilidade matemática. Certa feita Einstein declarou, a respeito das leis da natureza, que nelas "se revela uma razão tão sobranceira, [113] que todo o racional da inteligência humana e da ordem humana não passa de insignificante reflexo". O que, sem dúvida, quer dizer que todo o nosso pensamento, de fato, é mero refletir sobre o que já foi pensado. Nosso pensamento somente pode tentar, de modo pobre, reproduzir aquele "ser-pensado" que são as coisas, encontrando ali a verdade. A compreensão matemática encontrou aqui, como que através da matemática do cosmos, o "Deus dos filósofos" – aliás com toda a sua problemática, que se trai, quando Einstein recusa continuamente o conceito pessoal de Deus como sendo "antropomorfo", catalogando-o como "religião do medo" e "religião moral", à qual contrapõe a "religiosidade cósmica" como a única condizente, que, para ele, se concretiza "na admiração extasiada da harmonia das leis da natureza" em uma "fé profunda na inteligência do edifício dos universos" e no "anseio pelo desvendamento de um, mesmo que seja, medíocre reflexo da razão que se revela neste mundo".
Eis, diante de nós, o problema inteiro da fé em Deus: de um lado, percebe-se a transparência do ser que, como "ser-pensado", aponta para um pensamento, mas, simultaneamente, encontramos a impossibilidade de relacionar esse pensar do ser com o homem. Torna-se visível a barreira erguida por um conceito de pessoa estreito e não suficientemente refletido, a dificultar a equiparação do Deus da fé com o Deus dos filósofos.
Antes de tentar avançar, acrescento uma segunda declaração semelhante, de um cientista. James Jeans disse certa vez: "Averiguamos que o universo apresenta vestígios de uma [114] força planificadora e controladora, que tem algo de comum com o nosso próprio espírito individual. Enquanto o avanço hodierno nos permite ver, não se trata de sentimento, moral ou capacidade estética, mas da tendência de pensar de um modo que, na falta de termo melhor, denominamos geometria". Tornamos a encontrar fenômeno idêntico: o matemático descobre a matemática do cosmos, o "ser-pensado" das coisas. E nada mais. Descobre apenas o Deus dos filósofos.
Mas, será de admirar um tal fato? O matemático que considera o mundo matematicamente, pode encontrar no cosmos outra coisa que não a matemática? Não deveríamos perguntá-lo, se jamais contemplou o mundo de outra maneira senão matematicamente? Pergunto; por exemplo, se ele nunca viu uma pereira em flor e nunca se admirou de que o processo da fecundação, numa espécie de balé entre abelha e árvore, não se realiza de outro modo senão mediante a flor, incluindo aí o milagre plenamente inútil da sua beleza, que, de novo, somente pode ser entendido pela participação e pelo empenho do que já é belo sem nós? Se Jeans pensa que algo assim ainda não foi descoberto naquele espírito, poder-se-á responder-lhe serenamente: também jamais será nem pode ser descoberto pela física, porque ela, em seu questionamento, abstrai, naturalmente, do sentimento estético e da atitude moral, interrogando a natureza com mentalidade puramente matemática e, conseqüentemente, podendo enxergar exclusivamente o lado matemático da natureza. A resposta depende sempre da pergunta. Ora, o homem à procura de uma visão global, será antes obrigado a dizer: sem dúvida, deparamos com matemática objetivada no mundo. Mas muito menos deixamos de encontrar no mundo o milagre inaudito e inexplicável da beleza, [115] ou melhor: no mundo existem processos, que se apresentam ao espírito inquiridor do homem sob a forma do belo, obrigando-o a reconhecer que o matemático realizador desses processos desenvolveu sua fantasia criativa em proporção inaudita.
Resumamos as observações enfileiradas de modo esquemático e fragmentário: mundo é espírito objetivo; apresenta-se-nos em uma estrutura espiritual, isto é, oferece-se como reflexível e compreensível, à nossa mente. Daí se segue o próximo passo. Dizer: Credo in Deum – "creio em Deus" exprime a convicção de que o espírito objetivo é resultado de espírito subjetivo, podendo subsistir exclusivamente como sua forma derivada. Expresso de outra maneira: o "ser-pensado" (como o constatamos na estrutura do mundo) não é possível sem o pensar.
Quiçá seja ainda útil esclarecer e garantir esta afirmação, entrosando-a – novamente, apenas em traços gerais – em uma espécie de autocrítica da razão. Após vinte e cinco séculos de pensamento filosófico já não nos é mais possível falar simplesmente e despreocupadamente do assunto, como se muitos outros antes de nós não tivessem tentado a mesma coisa, fracassando em seu intento. Além disto, se olharmos para o montão de ruínas de hipóteses, de agudeza mental esbanjada sem resultado e de lógica desengrenada que a história apresenta, ameaça abandonar-nos a coragem de encontrar algo da verdade propriamente dita e oculta, que ultrapassa o imediato. Contudo, a impossibilidade não é tão imensa como à primeira vista poderia parecer. Pois, apesar da quase inumerável multiplicidade de caminhos filosóficos contraditórios, apresentam-se, em última análise, apenas umas poucas possibilidades básicas para explicar o mistério do ser. Poderíamos formular assim a pergunta, na qual, afinal, tudo está incluído: Na multiplicidade dos seres individuais, onde identificar, vamos dizer, a matéria comum do ser – qual é o ser único [116] que se encontra atrás de todas as coisas existentes, as quais "são"? As múltiplas respostas, apresentadas no correr da história, podem reduzir-se a duas possibilidades fundamentais. A primeira soaria mais ou menos assim: tudo o que encontramos é, afinal de contas, matéria; ela é o único elemento que sobra como realidade comprovável; portanto ela representa o ser propriamente dito da existência – eis o caminho materialista. A outra possibilidade aponta para rumo oposto: quem observar a matéria até o fim, descobrirá ser ela "ser-pensado", pensamento objetivado. Portanto, a matéria não pode ser o último elemento. Antes dela, encontra-se o pensar, a idéia; todo o ser é, finalmente, um "ser-pensado", tendo de ser reduzido a espírito como protorealidade – eis o caminho idealista.
Para julgar tais hipóteses, urge perguntar mais exatamente: Que é matéria? E que é espírito? Muito resumidamente, poderíamos dizer: Chamamos "matéria" a um ser que não é autoconsciente de ser, que, portanto, "é", mas não se compreende a si mesmo. Por conseguinte, a redução de todo ser à matéria como forma original da realidade afirma que o começo e o fundamento de todo ser são constituídos por aquela forma de ser que não se compreende a si mesma; e isto significa ainda que o compreender do ser surge apenas como produto secundário e por acaso, no correr da evolução. Com isto consegue-se, ao mesmo tempo, a definição de espírito – que deve ser descrito como o ser que se compreende a si mesmo, como ser que está em si mesmo. De acordo com isto, a solução idealista da problemática do ser apresenta a imagem de uma única consciência. A unidade do ser consiste na identidade da consciência única, da qual os inúmeros seres são outros tantos momentos.
A fé cristã não coincide, sem mais, nem com uma nem com outra das duas soluções. Certamente, também a fé dirá: ser é um "ser-pensado". Até a matéria aponta para além de si, [117] para o pensar como o elemento anterior e mais original. Mas, em oposição ao idealismo que descreve todo ser como momentos de uma consciência única e envolvente, a fé cristã dirá: o ser é um "ser-pensado" – contudo, não de forma tal que permaneça exclusivamente como pensamento e o halo da independência se traia ao observador atento como simples aparência. A fé cristã conota, antes, que as coisas são "ser-pensado", originado de uma consciência criadora, de uma criativa liberdade e que aquela consciência criadora, a sustentar tudo, colocou o pensado dentro da liberdade do ser próprio e independente. Nisto a fé cristã ultrapassa qualquer idealismo puro. Enquanto este declara – como há pouco o constatamos – todo o real como conteúdo de uma única consciência, para a doutrina cristã o sustentador é uma liberdade criadora, que coloca o pensado, sempre de novo, na corrente da liberdade do próprio ser, de modo que, por um lado, ele é um "ser-pensado" de uma consciência e, contudo, por outro lado, é verdadeira ipseidade (é ele mesmo).
Com isto se desnuvia o cerne do conceito de criação: o modelo, de cujo enfoque se deve compreender a criação, não é o artífice, mas o espírito criador, o pensar criativo. Simultaneamente, torna-se evidente que a idéia de liberdade é a característica da fé cristã em Deus, em oposição a qualquer espécie de monismo. A fé coloca no começo de todo o ser, não uma consciência qualquer, mas uma liberdade criadora que torna a criar liberdades. Neste sentido, poder-se-ia denominar, em grau supremo, a fé cristã como uma filosofia da liberdade. Para a fé, a explicação do real em conjunto não está em uma consciência que abrange tudo nem em uma única materialidade; pelo contrário, à frente da fé encontra-se uma liberdade que pensa e, pensando, cria liberdades, transformando assim a liberdade em forma estrutural de todo o ser.
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