Um olhar sobre a concepção antropológica na primeira encíclica do falecido Papa polaco, assinada a 4 de Março de 1979
Uma fenomenologia da condição humana: O ponto de partida da reflexão antropológica que suporta o documento papal, e que vai estruturar muitas outras intervenções ao longo do Pontificado, estabelece três vectores de análise que são, ao mesmo tempo, as dimensões constituintes da manifestação da realidade humana: a própria experiência do homem, a razão e o sentido da dignidade. Em articulação com sua formação acadé-mica na área da fenomenologia (as teses sobre Max Scheler e sobre ‘a pessoa que age‘), João Paulo II não apenas destaca do plano vivencial os universais nele contidos como amplia o próprio conceito de experiência de modo a que ela integre toda a produção intencional do ser humano, convertendo-se então em sinónimo de história ou de cultura, o horizonte da experiência integral do homem. A Cultura humana, manifestando-se numa essencial proliferação de culturas e de uma congénita diversidade no seio de cada cultura, é efectivamente matriz de identidade e autêntica fenomenologia da verdade do homem: a natureza deste, em sentido estrito, é ser cultura, pois tudo o que somos, somo-lo culturalmente, mesmo no que transcende todas as culturas.
Da condição humana assim perspe-ctivada, o Papa insiste privilegiadamente na vivência do tempo, do tempo individual e do tempo colectivo, da tradição e da actualidade, da memória e da esperança, da biografia, da história e da aventura. E o tempo é inquietação radical e consubstancial ambiguidade: experiência de uma caducidade, intrínseca à natureza criada ou provocada pela iniciativa dos homens, de uma morte multiforme, anunciada ou antecipada pela malevolência dos homens; mas é também oportunidade de criação e nele « pulsa aquilo que é mais profundamente humano: a busca da verdade, a insaciável necessidade do bem, a fome da liberdade, a nostalgia do belo e o apelo da consciência » ( Redemptor Hominis, nº 18 ). A situação da nossa época actualiza esta «natureza dialéctica fundamental do cuidado do homem pelo homem»: em face de realizações tremendas do génio humano emerge em novas formas e com uma seriedade inédita a alternativa crucial entre a promessa e a ameaça, o progresso e a regressão, a liberdade e a alienação, o entusiasmo e o medo, a cultura da vida e a anti-cultura da morte.
A presença destas tensões acompanha a génese da consciência de si; mas, na perspectiva do Papa, esta atenção si exige o “diálogo“, ou seja, o reconhecimento do outro, sem se deter aí, pois importa passar ao “ colóquio “, essa comunhão a muitas vozes de um encontro essencial.
A razão da humanidade: o fenómeno humano alude a um modo de ser diferenciado em planos: em primeiro lugar à singularidade irredutível de uma existência, “ cada homem “; depois, à totalidade da espécie, que não é mera colecção de indivíduos, “ todos os homens “; por último, à humanidade em qualquer dos seres humanos, fundamento do reconhecimento de uma mesma origem e de um idêntico destino de uma unidade, identidade e comunidade insecantes. O discurso antropológico não pode omitir nenhum destes sedimentos de sentido.
Da constituição do humano, João Paulo II releva primariamente a corporeidade: o homem é, segundo a expressão de Malebranche “um espírito encarnado“, e o Papa, subvertendo séculos de plato-nismo popularizado e de espiritualismo descarnado, afirma luminosamente, a propósito da frase “ O espírito é que vivifica, a carne para nada serve “, «estas palavras, malgrado as aparências, exprimem a mais alta afirmação do homem: a afirmação do corpo, que o espírito vivifica» (Red. Hom., nº 18 ). O corpo singulariza e faz comunicar: a socialidade, como condição de possibilidade mesma de emergência do humano como tal, «desde o momento da sua concepção», integra-o numa rede de contactos, situações e estruturas sociais que não só o determinam, mas o identificam como solicitação a uma resposta. A institucionalidade, que estabiliza e alarga as relações sociais no âmbito de povos e nações, não é um elemento exterior e formal da existência humana, mas a viabilização mesma da sua realidade cultural. Todos estes lugares do humano são operadores da sua própria humanidade como processo histórico, plural e de apropriação por pertença.
A dignidade como iniciativa e pertença: este conceito designa na encíclica a protagonização da própria história, nos planos pessoal, comunitário e social e ainda como membro do género humano; é assim assimilável ao conceito de liberdade, impedindo este de se confundir quer com o recuo egoísta quer com a expansão da vontade de poder; ele descreve a passagem do instinto de auto-afirmação à vontade cultivada de aceder a si pela realização do que torna comum e não segrega. Três traços definem, segundo o Papa, os contornos de uma existência em liberdade: o primado do Direito no espaço público, a exigência da Ética na promoção de humanidade, e a criação da beleza da Arte como transfiguração do humano. No horizonte, a experiência da Fé que abre para a derradeira verdade do homem.
A experiência religiosa revela-se coextensiva à história da humanidade: na pluralidade das suas expressões apontam a mesma convergência do sentido de Deus e do sentido do humano. Testemunham que o homem não fica prisioneiro de si mesmo, mas que se ultrapassa infinitamente e é capaz de redenção; a fé dos cristãos vê como ela «produz no homem frutos de profunda maravilha perante si próprio. [ ... ]. Aquela profunda estupefacção a respeito do valor e da dignidade do homem chama-se Evangelho» ( Red. Hom. nº 10 ).
Manuel José do Carmo Ferreira, Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
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