(...) Encontrais-vos aqui reunidos em grande número provenientes dos respectivos Países, para vos confrontardes acerca de um tema crucial no âmbito da mais vasta reflexão acerca da dignidade da vida humana: "Natureza e dignidade da pessoa humana como base do direito à vida. Os desafios do contexto cultural contemporâneo".
Escolhestes tratar um dos pontos centrais que estão na base de qualquer reflexão ulterior, quer ela seja de tipo ético-aplicativo no campo da bioética, quer de tipo sociocultural para a promoção de uma nova mentalidade em favor da vida.
Para muitos pensadores contemporâneos os conceitos de "natureza" e de "lei natural" demonstram-se aplicáveis unicamente ao mundo físico e biológico ou, enquanto expressão da ordem do cosmos, à investigação científica e à ecologia. Infelizmente, nesta perspectiva, torna-se difícil captar o significado da natureza humana em sentido metafísico, assim como o de lei natural na ordem moral.
Sem dúvida, o facto de se ter perdido quase completamente o conceito de criação, conceito que se refere a todas as realidades cósmicas, mas que reveste um significado particular em relação ao homem, contribuiu para tornar mais difícil esta passagem para a profundidade do real. Para isto contribuiu também o enfraquecimento da confiança na razão, que caracteriza grande parte da filosofia contemporânea, como realcei na Encíclica Fides et ratio (cf. n. 61).
Por conseguinte, é necessário um renovado esforço cognoscitivo para voltar a compreender na sua raiz, e em toda a sua amplitude, o significado antropológico e ético da lei natural e do conceito de direito natural com ela relacionados. De facto, trata-se de demonstrar se e como é possível "reconhecer" as características próprias de cada ser humano, em termos de natureza e dignidade, como fundamento do direito à vida, nas suas múltiplas formulações históricas. Só com esta base é possível instaurar um verdadeiro diálogo e uma colaboração autêntica entre crentes e não crentes.
3. A experiência quotidiana evidencia a existência de uma realidade básica comum a todos os seres humanos, graças à qual eles podem voltar a conhecer-se como tais. É necessário fazer sempre referência "à natureza própria e original do homem, à "natureza da pessoa humana", que é a própria pessoa na unidade de alma e corpo, na unidade das suas inclinações tanto de ordem espiritual como biológica, e de todas as outras características específicas necessárias à obtenção do seu fim" (Veritatis splendor, 50; cf. também Gaudium et spes, 14).
Esta natureza peculiar fundamenta os direitos de cada indivíduo humano, que tem a dignidade de pessoa desde o momento da sua concepção. Esta dignidade objectiva, que tem a sua origem em Deus Criador, baseia-se na espiritualidade que é própria da alma, mas é também extensiva à sua corporeidade, que é uma sua componente fundamental. Dela, ninguem pode privar outrem, aliás todos a devem respeitar em si e no próximo. É uma dignidade igual em todos e que permanece completa em qualquer estádio da vida humana individual.
O reconhecimento desta dignidade natural é a base da ordem social, como nos recorda o Concílio Vaticano II: "embora existam legítimas diversidades entre os homens, a igual dignidade das pessoas exige que se chegue a condições de vida justas e mais humanas" (Gaudium et spes, 29). A pessoa humana, com a sua razão, é capaz de reconhecer tanto esta dignidade profunda e objectiva do próprio ser, como as exigências éticas que delas derivam. Por outras palavras, o homem pode ler em si o valor e as exigências morais da própria dignidade. É uma leitura que constitui uma descoberta sempre perfectível, segundo as coordenadas da "historicidade" típicas do conhecimento humano.
Foi quanto realcei na Encíclica Veritatis splendor, a respeito da lei moral natural que, segundo as palavras de São Tomás de Aquino, "não é mais do que a luz da inteligência infundida por Deus em nós. Graças a ela, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz e esta lei, Deus concedeu-as na criação" (n. 40; cf. também Catecismo da Igreja Católica, nn. 1954-1955).
4. É importante ajudar os nossos contemporâneos a compreender o valor positivo e humanizante da lei moral natural, esclarecendo uma série de desentendimentos e de interpretações falazes.
O primeiro equívoco que deve ser eliminado é "o suposto conflito entre liberdade e natureza", que "se repercute também sobre a interpretação de alguns aspectos específicos da lei natural, sobretudo da sua universalidade e imutabilidade" (Veritatis splendor, 51). Com efeito, também a liberdade pertence à natureza racional do homem e pode e deve ser orientada pela razão: "graças precisamente a esta "verdade", a lei natural implica a universalidade. Aquela, enquanto inscrita na natureza racional da pessoa, impõe-se a todo o ser dotado de razão e presente na história" (ibid.).
5. Outro ponto que deve ser esclarecido é o suposto carácter estático e fixista atribuído à noção de lei moral natural, sugerido talvez por uma errada analogia com o conceito de natureza próprio das realidades físicas. Na verdade, o carácter de universalidade e obrigatoriedade moral estimula e impele o crescimento da pessoa. "Para se aperfeiçoar na sua ordem específica, a pessoa deve praticar o bem e evitar o mal, deve vigiar pela transmissão e conservação da vida, aperfeiçoar e desenvolver as riquezas do mundo sensível, promover a vida social, procurar o verdadeiro, praticar o bem, contemplar a beleza" Veritatis splendor, 51, cf. São Tomás, Summa Theologica, I-II, q. 94, a. 2).
Com efeito, o Magistério da Igreja apela à universalidade e ao carácter dinâmico e perfectivo da lei natural em referência à transmissão da vida, tanto para manter no acto procriativo a plenitude da união esponsal, como para manter no amor conjugal a abertura à vida (cf. Humanae vitae, 10; Instrução Donum vitae, II, 1-8). Analogamente, o Magistério chama a atenção para o tema do respeito da vida humana inocente: o pensamento vai para o aborto, a eutanásia, a supressão e experimentação destruidora dos embriões e dos fetos humanos (cf. Evangelium vitae, 52-67).
6. A lei natural, enquanto regula as relações inter-humanas, qualifica-se como "direito natural" e, como tal, exige o respeito integral da dignidade de cada indivíduo na sua busca do bem comum. Uma autêntica concepção do direito natural, entendido como tutela da iminente e inalienável dignidade de cada ser humano, é garantia de igualdade e dá um verdadeiro conteúdo àqueles "direitos do homem" que foram postos como fundamento das Declarações internacionais.
De facto, os direitos do homem devem relacionar-se com o que o homem é por sua natureza e em virtude da própria dignidade, e já não com as expressões das opções subjectivas próprias de quantos detêm o poder de participar na vida social ou daqueles que obtêm o consentimento da maioria. Na Encíclica Evangelium vitae denunciei o perigo grave que esta falsa interpretação dos direitos do homem, como os direitos da subjectividade individual ou colectiva, separada da referência à verdade da natureza humana, possa levar também os regimes democráticos a transformarem-se num substancial totalitarismo (cf. nn. 19-20).
Sobretudo, entre os direitos fundamentais do homem, a Igreja católica reivindica para cada ser humano o direito à vida como direito primário. Fá-lo em nome da verdade do homem e em tutela da sua liberdade, que não pode subsistir a não ser no respeito da vida. A Igreja afirma o direito à vida de cada ser humano inocente e em todos os momentos da sua existência. A distinção que por vezes é sugerida nalguns documentos internacionais entre "ser humano" e "pessoa humana", para depois reconhecer o direito à vida e à integridade física unicamente à pessoa já nascida, é uma distinção artificial sem fundamento, nem científico nem filosófico: cada ser humano, desde a sua concepção até à sua morte natural, possui o direito inviolável à vida e merece todo o respeito devido à pessoa humana (cf. Donum vitae, 1).
7. Caríssimos, para concluir, desejo encorajar a vossa reflexão sobre a lei moral natural e sobre o direito natural, desejando que dela possa surgir um renovado e espontâneo impulso de instauração do verdadeiro bem do homem e de uma ordem social justa e pacífica. É voltando sempre às raízes profundas da dignidade humana e do seu verdadeiro bem, é baseando-se no fundamento do que existe de eterno e fundamental no homem, que se pode dar início a um diálogo fecundo com os homens de qualquer cultura com vista a uma sociedade inspirada nos valores da justiça e da fraternidade.
(...)
DISCURSO DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II AOS PARTICIPANTES NA VIII ASSEMBLEIA GERAL DA PONTIFÍCIA ACADEMIA PARA A VIDA
Quarta-feira, 27 de Fevereiro de 2002
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