João César das Neves
Um dos aspectos mais tontos e perigosos da sociedade mediática é o fenómeno das causas. De repente, ninguém sabe bem de onde nasce uma campanha que se transforma momentaneamente num grande movimento aglutinador de pessoas de todas as origens. Muita gente abandona as suas vidas, esquece o trabalho ou dedica horas vagas a promover o propósito, enquanto a massa anónima toma partido e discute o tema. Durante umas semanas, esse assunto monopolizará as atenções, ultrapassando os problemas reais, que por vezes até são graves: zangas, divisões, dificuldades. Tudo emudece perante a causa do momento. Depois, com a mesma facilidade, a coisa morre, para ser substituída por outra.
Os temas são os mais variados, das grandes questões, como a justiça mundial ou o ambiente, até às questões espúrias e tontas. O factor determinante em todo o processo é, sem dúvida, a comunicação social, e em particular a televisão. É ela que determina o alinhamento dos telejornais e decide as causas que são empoladas ou esquecidas. Não costuma ser a imprensa a criar os temas, pois há sempre na sociedade milhões de interesses, objectivos, sonhos à espera de reconhecimento. Mas são os jornalistas que decidem focar as atenções neste e omitir ou esquecer os demais. A sociedade actual vive em permanente alvoroço. O importante é manter a adrenalina e o nervosismo, que alimentam a procura dos media.
Internet e blogs pareceram democratizar o processo. Agora todos têm possibilidade de criar um sítio e fazer a sua campanha. Basta uma breve visita à Net para ver o enorme empenhamento que por lá pulula, frequentemente enraivecido, amargo e extremista. Existem mesmo exemplos de movimentos de massas que, nascidos em blogs ou SMS, tomaram dimensão nacional, como nas eleições espanholas após o atentado de 11 de Março de 2004 e a oposição ao aeroporto da Ota.
Mas esta democratização é uma ilusão. Os grandes jornais e televisões mantêm bem firme o domínio sobre todo o processo. Só se torna nacional aquilo que é adoptado centralmente pelos meios oficiais. A Net apenas substituiu tabernas e cafés como viveiro de causas. Aliás, à medida que a própria Internet se democratiza, até aqueles blogs que durante algum tempo tiveram alguma influência ficarão mergulhados na multi-dão.
O mais curioso é quando um assunto a que ninguém ligou nada durante milénios pretende transformar-se de súbito em decisivo, impondo uma única solução como aceitável, que por acaso ninguém nunca considerou razoável. O casamento dos homossexuais é um extremo destes. Sempre existiu homossexualidade e jamais se viu defender que ela fosse equiparável ao casamento, mesmo em sociedades que lhe foram favoráveis. Agora de repente tornou--se um imperativo da mais elementar justiça. Quem o negar é um bárbaro chauvinista e intolerante, equiparado a nazis, esclavagistas e símbolos do tipo. Chegou-se ao ponto de o tema ser incluído com urgência no programa eleitoral do partido maioritário, que, pelos vistos, foi chauvinista da fundação até há dois meses sem dar por isso.
O mais espantoso é ninguém notar a terrível manipulação que sofre. Nos últimos meses só pandemias já foram duas, uma de aves outra de porcos, ambas terríveis. Devemos andar perturbados por os preços do trigo, arroz e petróleo estarem baixos, como há uns meses devíamos sofrer por eles serem altos. Desde o filme de Al Gore em 2006 andamos aterrorizados com os gases com efeitos de estufa; mas na Cimeira do Milénio de 2000 a questão pungente era a pobreza mundial, que por acaso só se resolve com esses gases. Na Conferência do Cairo de 1994 foi o excesso de população; agora é o envelhecimento, causado pela falta dela.
Todas estas questões são de inegável importância. Mas são muitas, variadas e por vezes contraditórias. Acima de tudo são-nos alheias e afastam-nos dos reais problemas da nossa vida. É incrível a quantidade de pessoas que vivem projectadas na ficção, lutando por questões longínquas ou abstractas que desconhecem mas julgam reais. Só porque a televisão disse.
Fonte: Blog O povo
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