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JOHN HENRY NEWMAN: DA RAZÃO IMPLÍCITA À RAZÃO EXPLÍCITA

Um dos rasgos que mais impressionam e cativam em J. H. Newman [1801-1890] é a luminosidade interior. E justamente numa personalidade pluriforme, rica de dons e de capacidades que, como poucos, ele soube harmonizar em si. Noutros, semelhante profusão de qualidades humanas seria porventura uma fonte de contradições, de rupturas, de desequilíbrios e de dispersão; em Newman, graças à sua imensa sensibilidade moral, á sua profundeza religiosa, á sua extraordinária clarividência intelectual, á sua acutilante e quase genial percepção das moções discordantes do coração dos homens, ao seu poder excepcional de expressão literária, à sua vibração poética e à sua subtil ironia, esta opulência de dotes, pastoreados por uma incessante e incansável demanda espiritual desde a juventude, gera uma impressão de subterrânea unidade de vida e de pensamento que, contra todos os obstáculos exteriores e interiores, constrói uma existência exemplar de total veracidade e coerência. A sua longa existência, que ocupa, por assim dizer, todo o século XIX e se situa na época mais gloriosa da história da Inglaterra, tempo da consolidação da pax britannica mundial, da revolução industrial e do reinado da Rainha Vitória, quase se parte em duas metades simétricas; anglicano na primeira, católico na segunda desde 1845, foi em ambas igualmente criativo, porventura mais copioso na primeira do que na segunda, mas sempre empenhado na busca de uma congruência plena com as exigências da sua consciência e com a autenticidade da fé cristã. Como ele próprio afirmou: para se «permanecer o mesmo», é necessário mudar; «viver é mudar, e ser perfeito é ter mudado muitas vezes» (1). Assim se compreende a sua evolução pessoal desde o evangelismo calvinista, passando pelo anglicanismo oficial com a sua intensa desconfiança e hostilidade frente ao romanismo, até entrar no seio da Igreja católica e acabar, por nomeação de Leão XIII, como seu cardeal. A unidade da sua peregrinação espiritual dimana justamente das suas intuições religiosas, do aprofundamento a que, de modo indefectível, ele as sujeitou, mais do que dos seus trabalhos ou das suas obras, que fizeram dele uma glória das duas Igrejas, um herói do pensamento cristão e um dos grandes mestres da língua inglesa na prosa, na oratória e sobretudo na controvérsia. Newman foi, antes de mais, um despertador e um mediador.
1. Despertador, primeiro, como anglicano; profundamente radicado nas tradições da teologia e da cultura inglesas (dificilmente se encontra nos seus escritos uma ressonância do pensamento filosófico da Europa continental da altura, por exemplo de Kant, Hegel, A. Comte, etc.) opôs-se vivamente ao «liberalismo» como a «religião do dia» e, de certo modo, como o ponto de confluência de correntes que já vinham dos começos da modernidade: o deísmo e a Ilustração (Herbert com Cherbury), o empirismo e o cepticismo ingleses (J. Locke e D. Hume), o racionalismo e o moralismo (John Toland e Anthony Collins) e ainda o esteticismo romântico de Shaftesbury na determinação da religião como questão do sentimento. Reagiu sobretudo contra a Igreja oficial instalada e aburguesada, que ele tentou levar à reforma interior, à redescoberta das suas origens e à fidelidade à tradição apostólica. Foi precisamente na demanda da apostolicidade eclesial, e não obstante os seus fortes preconceitos pessoais anti-romanos, hauridos do meio ambiente e da sua formação religiosa, que Newman, paradoxalmente, se foi encaminhando pouco a pouco para a Igreja católica. Esse intenso trabalho de investigação teológica, de reflexão espiritual, ecoa na redacção e na difusão dos Tracts for the Times (entre 1833-41) e sobretudo nos notáveis sermões pronunciados na igreja de St. Mary de Oxford (Plain and parochial Sermons; University Sermons) pelos quais se impôs ao mundo inglês e se tornou numa referência nacional. Nessa demanda criou, juntamente com John Keble, Richard Hurrell Froude e outros, o Movimento de Oxford entre 1833 e 1845. Visava este a independência da Igreja como comunidade, como corpo de Cristo, que não deriva a sua autoridade do Estado e do Parlamento, mas dos Apóstolos, dos quais ele recebeu o tríplice ministério (bispo, sacerdote e diácono), assegurado pela sucessão apostólica do episcopado. O Movimento de Oxford professava, pois, princípios claros: o princípio dogmático, ou seja, a sujeição a uma fé com conteúdos, com verdades e ensinamentos concretos – contra o liberalismo religioso; o princípio sacramental, ou seja, a existência de uma Igreja visível com sacramentos e ritos, «que são os canais da graça invisível»; e, por fim, o princípio do ministério episcopal como inerente à estrutura essencial da Igreja. Neste trajecto, Newman, que não forma marcado pela Escolástica e pela sua teologia abstracta, familiarizou-se com os Padres da Igreja, sobretudo com os Orientais e, entre estes, com o grande e indomável S. Atanásio e, no seu íntimo, estava convencido de que a Igreja da época patrística «representa o tempo “clássico” da Igreja e, por conseguinte, o critério e a orientação, a norma e o juízo para a Igreja de todos os tempos» (2). Cada vez mais atento, no decurso desta procura, á dimensão encarnacional do cristianismo, descobriu o sentido histórico do desenvolvimento interno do dogma; e a Igreja surgiu cada vez mais, aos seus olhos, como um organismo vivo que mantém a sua identidade justamente no meio do crescimento e da mudança. No famoso escrito, The Essay on the Development of Christian Doctrine (1845), publicado nas vésperas da sua conversão ao catolicismo, reconhece que a história e a evolução histórica, no seu desdobramento, pertencem á essência da revelação que culmina em Jesus Cristo; e também que na Encarnação reside o princípio do cristianismo como facto e como ideia. Esta ideia, no decurso do tempo, desdobra-se e patenteia-se numa multiplicidade de ideias e de aspectos de ideias que estão entre si conexos e se harmonizam uns com os outros; determina em si e de modo imutável como ele é o próprio facto objectivo que assim se representa, se desentranha e se manifesta na riqueza ilimitada do seu conteúdo. A consequência foi a mitigação do princípio unilateral, insulado e extremo do sola scriptura protestante e do conceito classicista, muito acalentado e profundamente arreigado, segundo o qual a Igreja dos primeiros séculos era o modelo normativo da figura histórica da Igreja em geral. Pelo contrário, «o critério genuíno da verdade e da continuidade da fé e da doutrina cristãs não é uma pura verdade artificialmente destilada ou preparada, mas a história concreta da Igreja no seu todo e a evolução nela tornada facto como desdobramento da origem na multiplicidade das suas dimensões e perspectivas; como introdução à verdade plena e total (3). Não se trata, decerto, de negar à origem um significado normativo e crítico da tradição; como princípio aberto, e não como fronteira delimitativa, ela precisa do tempo e da história para desenrolar, numa maturação e efectuação progressivas, a sua realidade, anunciada de uma vez por todas. Segundo a imagem de Newman, que reconheceu na Igreja de Roma os critérios de um desenvolvimento legítimo, o rio não sobe mais do que a fonte; mas o que a fonte em si tem só no rio se pode conhecer. Despertador foi também já no seio do catolicismo, em circunstâncias particularmente difíceis, porque o universo católico contemporâneo, apostado então na defensiva perante o mundo moderno, arrimado ao pensamento escolástico de pendor anistórico na teologia e nos fundamentos filosóficos, pouco fundado na Escritura e esquecido da patrística, nunca acolheu com plena confiança o novel convertido, antes suspeitou e espreitou sempre nele o perigo da heresia e o teve não só por «liberal», mas ainda por um homem extremamente perigoso. Na realidade, porém, o que caracterizou Newman, neste período complicado, e por vezes doloroso, da sua vida, foi a coragem de se abrir ao mundo, ao mundo do espírito, da cultura e da ciência, de intentar uma aproximação da fé e do saber, da religião e da razão, da Igreja e da civilização – só que a sua premonição não foi ouvida e o desfecho foi, algumas décadas depois, a crise do modernismo e, no plano espiritual, a rendição das Igrejas ao nacionalismo, na altura da primeira guerra mundial. 2. Mas Newman foi igualmente um grande mediador e reconciliador.
a) Primeiro, no âmbito da teologia. Num tempo de estranhamento e de hostilidade recíproca das Igrejas, viveu e ensaiou de modo concreto, na sua pessoa, na sua luta interior, no seu percurso espiritual e nas suas obras, entre desconfianças e ataques exteriores, mas também no conluio com profundas amizades, o caminho de um ecumenismo verdadeiro, que atendia mais à substância comum da fé do que às diferenças nas opiniões teológicas e procurava eliminar as discriminações nascidas de tradições eclesiais particulares, quase sempre coladas a factores impositivos de ordem nacional ou política, portanto, longe da inspiração evangélica. De facto, devido à acção e à influência de Newman, o catolicismo, minoria desprezada e desconsiderada na Inglaterra coeva, acabou por ganhar maior visibilidade e consideração e por ver atenuados os mecanismos de injustiça social que há muito o oprimiam. Numa época de afirmação exasperada da autoridade eclesiástica, tempo do Syllabus e da refrega entre o liberalismo e o ultramontanismo, afirmou e sublinhou mais do que ninguém o significado, a importância e o alcance do consensus ou sensus fidelium para a mútua conspiração que, ao sabor do espírito Santo, conjunge no impulso de aprofundamento da fé a comunidade dos fiéis e o magistério eclesiástico. No escrito, On Consulting the Faithful in Matters of Doctrine, § 2, publicado em The Rambler em Julho de 1859, diz: «… a tradição dos Apóstolos, confiada a toda a Igreja nas suas diversas componentes e funções per modum unius, manifesta-se de várias maneiras em tempos diferentes: umas vezes pela boca do episcopado, outras pelos doutores, outras pelo povo, outras ainda pelas liturgias, ritos, cerimónias e costumes, pelos acontecimentos, disputas e movimentos, e por todos os outros fenómenos abrangidos sob o nome de história. Segue-se que nenhum destes canais da tradição pode ser tratado sem respeito; garantindo-se ao mesmo tempo que o dom de discernir, discriminar, definir, promulgar e impor qualquer parte dessa tradição reside apenas na Ecclesia docens.» Como homem espiritual, que dentro da comunidade eclesial se sabe e apreende numa relação imediata com Deus («Eu e o meu Criador»), realçou o valor insubstituível da consciência individual, perante a qual a obediência a instâncias externas nunca pode ser um valor absoluto e incondicional. Em A Letter Adresses to the Duke of Norfolk, 5, expressa-se do seguinte modo: «A regra e a medida do dever não é a utilidade, nem a justeza, nem a felicidade do maior número, nem a conveniência do Estado, nem a acomodação, a ordem e o pulchrum. A consciência não é um egoísmo de vistas largas, mas um mensageiro d’Aquele que, na natureza e na graça, nos fala através de um véu, nos ensina e governa pelos seus representantes. A consciência é o original Vigário de Cristo, um profeta nas suas informações, um monarca na sua atitude decretória, um sacerdote nas suas bênçãos e anátemas e, ainda que o sacerdócio eterno através da Igreja deixasse de existir, nela o princípio sacerdotal persistiria e disporia de um poder soberano.» Imbuído do pensamento patrístico, não separou a Criação e a Redenção, o natural e o sobrenatural, realçou o laço entre a tradição e a mudança à luz de uma «economia da verdade», e soube harmonizar a visão ontológica e cósmica dos Padres gregos, o seu optimismo espiritual, com a interioridade agostiniana, a iluminação intelectual com o amor, a luta do conhecimento com o sentimento intenso da responsabilidade pessoal. b) Newman foi também mediador no campo filosófico.
Em pleno século da burguesia, das revoluções sociais e da radicalização do ateísmo militante, com o seu intuito de total imanentização do mundo, da história e da cultura, na sua polémica com as correntes do positivismo, do cepticismo empirista da tradição inglesa e do materialismo, enveredou, antes de M. Blondel, mas de um modo paralelo, por um caminho de intra-transcendência e ensaiou um verdadeiro «método da imanência» na sua doutrina da consciência. Diga-se, de passagem, que nos dois pensadores (aliás, com afinidades entre si!) ressoa intensamente a temática agostiniana da domiciliação da verdade no homem interior, da index ratio, do mestre íntimo. Para Newman, a consciência, no seu testemunho implícito, na sua capacidade de discernimento espiritual, é simultaneamente sentido moral, sentimento intelectual, sentido de admiração, de aprovação ou censura, sempre emocional. É, pois, o princípio criativo da religião. Devido ao torvelinho do eros intelectual e da inquietude ética, à busca de uma inatingível harmonia entre a certirude (certeza subjectiva) e a certainty (certeza objectiva), ela abre necessariamente para o fundo teologal da nossa mente. É ameaçador, definitivo (4); mas, com a vida, pode perder-se o seu sentido, a sua percepção, a convicção secreta nela ínsita de que, embora estando em nós e sendo fonte das nossas acções responsáveis, não somos verdadeiramente senhores de nós próprios. Contra o cientismo, que no século XIX avançava rompante e se firmava num racionalismo metodológico de cariz monista, asseverou Newman que «o homem não é um animal raciocinante, mas um animal que vê, sente, contempla e actua» (5). Pela desconsideração do jogo das faculdades, acentuando antes o seu conflito, pela ignorância da imbricação essencial do intelecto e da imaginação, o cientismo mostra que vive da generalidade espectral e não da atenção ao particular, consagra a divisão e o desmembramento da «alma», nada sabe da relacionalidade essencial de todas as coisas (6), desconhece outras «gramáticas» (por exemplo, a do assentimento) além da lógica. No século que viu nascer os «mestres da suspeita» (K. Marx, F. Nietzsche e S. Freud), Newman aderiu a um realismo ontológico sereno e crítico, mas, no fundo, inalcançável. Perante o mistério de Deus, e não só, como ele reconhece, lidamos com as sombras geradas pelo nosso intelecto, com os seus inúmeros aspectos parciais (7). De uma maneira muito sua, no pólo oposto à consideração marxiana da consciência como mera ressonância social, à denúncia nietzscheana mediante a pesquisa «genealógica» ou ao negativismo freudiano perante o Eu Individual, foi atento, mas com um intuito construtivo, ao que chamou de «alucinações», «extravagâncias», «desordens funcionais» e «aberrações» do intelecto, «fenómenos meteorológicos da mente humana» (8), causados pela interferência turbulenta e obstrutiva de desejos, hábitos, fantasmas, preconceitos, crenças, opiniões na obtenção do conhecimento e no acesso à verdade sobre as coisas e sobre si mesmo. c) Poderia, pois, dizer-se que o pensamento de Newman ocupa um lugar interessante entre o pensamento pré-moderno e o marco pós-moderno.
Por um lado, no seu filosofar sem terminologia técnica e de tom essencialmente interrogativo, conversante e familiar, aliou em si o jeito experiencial e concreto do espírito inglês a um aristotelismo moderado, sobretudo no papel ou no relevo concedido à phronesis, que ele relaciona com o juízo supralógico, o judicium prudentis viri, o sentido «ilativo», baseado numa percepção holística das circunstâncias, do caso, e jorrando ao mesmo tempo da razão, do coração e de outras inspirações, que o sujeito implicado ignora e jamais pode trazer à luz da introspecção controlada. Tal não ficou sem consequências. Primeiro, o nosso teólogo cedo captou a unilateralidade do Iluminismo e o seu coração frio, a sua concepção abstracta e uniforme de pensamento, a sua convicção rasa de que os poderes do intelecto, a agudeza, a sagacidade, a subtileza e a profundidade são os únicos guias para a verdade. Não admira, pois, que a Era das Luzes se tornasse cega para os processos implícitos da mente raciocinante, que é em si arquitectónica, e não simplesmente analítica. Diz Newman: «O pensamento é demasiado vivo é múltiplo, as suas fontes são demasiado remotas e ocultas, a sua senta demasiado pessoal, delicada e tortuosa, o seu tema demasiado díspar e intrincado, para aceitar os empecilhos de qualquer linguagem, seja qual for a sua subtileza ou o seu limite» (9). Existe, portanto, uma distinção entre as formas «pessoal» e «científica» da busca da verdade. A ciência é decerto uma instituição de produção do conhecimento e da sua ratificação social, portanto conhecimento público, mas in statu nascendi jorra do diálogo difícil e trabalhoso, sujeito a mal-entendidos, entre a criatividade individual e a dureza das coisas que se ocultam e resistem à nossa invasão cognitiva; implica, por isso, o elemento ou o momento pessoal, que não é feito só de invenção clara, mas de turbulências várias. Em segundo lugar, como hermeneuta sagaz e intuitivo, Newman teve uma noção admirável da «pluralidade» intrínseca que nos é peculiar. A tal se deve a sua apreensão do que se poderia designar de «meteorologia da mente», já acima referida, a saber, o nexo ou, melhor, o novelo de emoções, imaginação, motivos e assentimento, de preconceitos, preferências e pressupostos, de gostos, hábitos e opiniões, cujo conjunto e variedade, no seu papel de quase primeiros princípios, constituem, de acordo com a metáfora newmaniana, o «mobiliário da mente» (10). Mas essa aparente «heterogeneidade», que é apenas funcional e operacional, supõe a unidade ôntica da nossa capacidade noética. No primeiro dos Sermons for various Occasions (S. 1. Intellect, the Instrumento of Religious Training) diz o grande polemista que a natureza ou condição da mente humana se pode encarar de dois pontos de vista principais, intelectual e moral. «Como intelectual, ela apreende a verdade; como moral, apreende o dever. A perfeição do intelecto chama-se habilidade e talento; a perfeição da nossa natureza moral é a virtude. E é aqui uma grande infelicidade nossa, e também a nossa provação, que, tal como as coisas estão no mundo, as suas se encontrem separadas e sejam entre si independentes; que onde existe o poder do intelecto não seja necessária a virtude; e que onde estão a rectidão, a bondade e a grandeza moral não seja necessário o talento. Mas não foi assim no início; não é que a nossa natureza seja essencialmente diferente do que era, quando inicialmente foi criada; mas o Criador, após a sua criação, elevou-a acima de si mesma por uma graça sobrenatural, que coadunava todas as suas faculdades e as fazia conspirar num só todo e agir, em comum, para um único fim; pelo que, se a raça tivesse persistido nesse estado abençoado de privilégio, nunca teria surgido a distância, a rivalidade, a hostilidade entre as diversas faculdades. As coisas são agora diferentes; tanto pior para nós; - foi-se a graça; a alma não consegue manter-se unida; desfaz-se em fragmentos; os seus elementos lutam uns com os outros. E assim como, quando um reino esteve, durante muito tempo, num estado de tumulto, de sedição ou rebelião, certas partes se separam do todo e do governo central e se estabelecem por si mesmas, assim também acontece com a alma do homem. Assim se passa, repito, com a alma, já há muito; por isso, surgiram nela vários reinos pequenos, entre si independentes e em guerra recíproca, tais e tantos que reduzem a soberania original a um espaço territorial e a uma influência não mais considerável do que aquela que eles próprios têm. E todos esses pequenos domínios, como os poderei designar, na alma são, naturalmente, no seu isolamento, incompletos e deficientes, fortes em certos pontos, fracos noutros, porque nenhum deles é o todo, suficiente por si mesmo, mas apenas uma parte do todo, o qual, pelo contrário, é feito de todas as faculdades da alma.» Sugere-se aqui, pois, que a mente humana, embora una e de suma elasticidade, é feita para a verdade; mas reparte-se pelos domínios da paixão ou do apetite, do intelecto, da consciência moral, que estão em conflito mútuo no interior de cada um, e com as suas concreções no mundo externo da cultura. Este, no seu tecido complexo, ateador de incerteza e de confusão, força-nos a uma escolha incessante e sem delongas, muitas vezes sem sabermos como, pois «pensar, falar e agir é já escolher». Tem a nossa mente numerosas repartições múltiplos departamentos e províncias do conhecimento que não se regem por critérios idênticos, antes todos respiram e actuam sob a reverberação de um mesmo horizonte de verdade e de sentido, que se aborda sob o prisma e os critérios de cada domínio. Aparenta-os, no entanto, conjunto dos elementos seguintes: são património do mesmo sujeito; intentam uma ordem das coisas que não é acessível só através dos esquemas lógicos, mas exige ainda o intercâmbio livre e espontâneo do intelecto e da imaginação, o papel das crenças, das concepções existentes, das qualidades pessoais. Tais domínios chegam, quanto muito, apenas à probabilidade. No mundo da vida, de facto, é contraído o âmbito da certeza, vasto o campo da opinião, diminuto o catálogo das certezas genuínas. Por isso, a probabilidade é o guia da vida (11); mas, nos meandros da existência, as formas de probabilidade fundam-se em certezas (12). Primeiro, porque, «se a vida é para a acção», nenhum de nós pode pensar ou agir sem a aceitação de verdades, não intuitivas, não demonstradas, todavia soberanas (13). Eis um Newman quase antifundacionalista, mas que não renuncia à consistência, à densidade e à captação veritativas da realidade, pois existe a verdade, que se pode alcançar. Mas a percepção dos seus primeiros princípios, que nos é natural, está debilitada, obstruída, pervertida pelas seduções dos sentidos e pela supremacia do Si mesmo e é, por outro lado, estimulada pelas aspirações ao sobrenatural; pelo que, no fim, se moldam assim dois tipos de mente, dois padrões e sistemas de pensamento – o departamento do saber natural, fundado na probabilidade, e o departamento do espiritual, que, tendo por eixo a consciência, não pode assentar na pêra probabilidade (14). Em ambos, no entanto, ressoa e repercute uma certeza indefectível em verdades primárias, que admite múltiplas variações de opinião na sua aplicação e disposição (15). Além disso, a correlação entre certeza e prova implícita é uma lei das nossas mentes (16). «Quando a lógica falha, os homens tornam-se pessoais; é o seu modo de apelar para os seus elementos primários do pensamento, para o seu sentido ilativo, contra os princípios e juízos de outrem» (17). Depois, «nenhuma verdade, por simples que seja, pode ser apreendida num só acto» (18). Apela forçosamente para a heterogeneidade que nos constitui, intima a constelação das nossas variegadas forças cognitivas, incrusta-se no elemento caótico do nosso viver, supõe uma confiança básica nos nossos sentidos, nas nossas capacidades de memória, de raciocínio e nas palavras de outrem, a qual, mesmo se repetidamente afectada pela experiência do erro, persiste como condição indispensável da vida prática e da existência no mundo. Por isso, dos erros e da não infalibilidade do nosso intelecto não se pode deduzir o cepticismo integral nem um puro espelhismo epistemológico a que corresponde apenas um mundo de aparências, sem bastidores ontológicos. A certeza dos nossos erros não impede a verdade de novas proposições que tentamos alcançar. Na aquisição desta nova verdade, além da invenção pessoal, da informação sensorial ou do fornecimento de dados, do jogo inferencial dos nexos lógicos, das notícias com que os outros, através das instituições sociais, nos circundam, tem lugar especial a relação hermenêutica entre o todo e as partes, a lei da forma ou da totalidade, que vigora concretamente na percepção sensível, mas vale para todos os campos da nossa investigação, estabelecendo uma vibração impalpável, mas fecunda, entre o explícito e o implícito: «O objecto dos sentidos apresenta-se à nossa visão como um todo, e não nos seus pormenores isolados» (19). Neste processo, não de todo controlável, imiscui-se ainda o sentido da historicidade, do desenvolvimento das ideias, do desdobre ou desenodar de uma realidade (por exemplo um conteúdo da Revelação), do exercício racional no interior de tradições. Compreende-se assim a importância e o relevo dados por Newman à experiência da vida humana, ao senso comum prático. Tal como os praticantes da «filosofia de vida» (F. Nietzsche, M. Scheler, H. Bergson, J. Ortega y Gasset e outros), acentuou no homem mais a acção do que razão, porque ele é, acima de tudo, vida, e esta é, como antes se lembrou, essencialmente acção. Captou com finura a nossa imersão nas coisas, as inumeráveis implicações das palavras, a profundeza e a respiração das associações da poesia das palavras e da sua história, em contraste com o espectro lógico que a ciência requer. O universal cenário vivo das coisas não é, pois, tanto um mundo lógico quanto poético. Por isso, «a argumentação verbal não é o princípio da crença interior» (20) nas questões mais importantes que nos atormentam; a mente humana, algo vagabunda, que caminha de coisas para coisas, de totalidades para totalidades (21), também não é como a imaginamos, mas como paulatinamente a vamos descobrindo; assenta sobretudo num processo inconsciente e tácito que, nos seus juízos, germina e irradia a partir de pressupostos explícitos ou implícitos (22), sem nenhuma medida comum entre si.
Ninguém expressa melhor este vagabundear noético do que Newman:
«A mente vagueia de um lado para outro, estende-se e avença com uma presteza que se tornou proverbial, com uma subtileza e uma versatilidade que desconcerta o exame. Salta de ponto para ponto, apossa-se de um por uma indicação qualquer; ganha outro por probabilidade; em seguida, valendo-se de uma associação; depois, recorrendo a uma lei recebida; a seguir, deitando a mão a um testemunho; por fim, entregando-se a alguma impressão popular ou a um instinto interior, ou a alguma memória obscura; e, assim, progride de uma maneira não dissimilar à de alpinista numa falésia alcantilada que, graças ao olho rápido, à mão pronta e ao pé firme, sobre, como, nem ele próprio sabe, pelos dons pessoas e pela prática, mais do que segundo uma regra, não deixando atrás de si nenhum vestígio e incapaz de ensinar outrem. Não é dizer demasiado que a marcha pela qual os grandes génios escalam a montanha da verdade é tão insegura e precária para os homens em geral como a subida de um montanhista habilidoso num despenhadeiro real. É um caminho que só eles podem tomar; e a sua justificação reside apenas no seu êxito. E tal é sobretudo o modo como todos os homens, dotados ou não dotados, comummente raciocinam – não de acordo com uma regra, mas por uma faculdade interior. O raciocínio, portanto, ou o exercício da razão é uma energia espontânea viva dentro de nós, não uma arte (23). Trata-se, como se vê, de uma conquista verdadeiramente «polémica» (em sentido etimológico) da verdade numa guerra sempre incerta, da certeza como drama; vale para o nosso assédio ao enigma do mundo e à profundeza das coisas; vigora também no âmbito da fé religiosa, que é somente um caso particular da postura «fiducial» inerente aos nossos empenhamentos cognitivos, que vivem e se alimentam das assunções previamente norteadoras da pesquisa. Domina, superintende e imbui todo este processo o juízo supralógico (24), faculdade essencialmente arquitectónica e presente em todos os assuntos concretos (25) como suplemento da lógica; tem, como hoje se diria, uma aura «holística», enquadradora, sintética, compositiva, que permite ligar per modum unius aquilo que um olhar analítico vê apenas como separado. Ramo seu é o «sentido ilativo» (na denominação newmaniana). Tem muito de dom pessoal, assegura o trânsito da inferência condicional para o assentimento incondicional, possui um certo matiz de adivinhação e de pressentimento, emerge por vislumbre e fulguração da acumulação de probabilidades convergentes (26), gera o assentimento, como acto indivisível, na sua integridade, com as suas concomitantes e circunstâncias, e também no seu contraste com a ilação lógica. «O assentimento, puro e simples, é a causa motriz de grandes feitos; é uma confiança, que brota mais dos instintos do que dos argumentos, alicerçada numa vida apreensão, animada por uma lógica transcendente, mais concentrada na vontade e na acção, pela simples razão de que não foi sujeita a qualquer desenvolvimento intelectual.» (27) O discernimento e a compreensão atenta desta «lógica transcendente», conatural ao acto de pensar, sobretudo na indagação do seu horizonte postremo, impedirão que, como por vezes aconteceu, tenham lugar «usurpações da razão», por exemplo, da religião no campo das ciências ou destas últimas no recinto da moral e da fé. Mas tais áreas da experiência e da acção humanas nunca se podem confundir, a não ser em virtude do desconhecimento da natureza genuína do intelecto ou por força de uma filosofia ingénua, para não dizer mal intencionada. Como lembra Newman – e trata-se de uma convicção do senso comum – o principal meio cognitivo que temos à disposição é a nossa mente, além da voz da humanidade e do curso do mundo; por ela testamos, interpretamos e corrigimos o que nos é proposto para a crença. Esta, se pretende ser iluminada, nunca se recusará a sopesar os conteúdos, os motivos, os argumentos; a explorar, a discriminar e a explicitar as virtualidades contidas nos seus dados ou, segundo o giro linguístico de Newman, nas «Evidências da Fé» (na acepção mitigada de indícios, sinais, traços, sintomas e insinuações, e não no sentido cartesiano de luz invencível de um conteúdo mental, que elimina toda a dúvida). Vale, de facto, para toda a actividade cognitiva (e prática) o mote seguinte: «Sem pressupostos, ninguém consegue provar nada acerca de nada (28).» Eis porque o cristão, ao dar as razões da esperança que o habita, estabelecerá um vínculo entre a mensagem sobrenatural, dom da graça e da economia divina, que ele acolhe, e o seu fundo antropológico. A crença nas verdades reveladas depende da crença nas naturais, pois a crença é um estado da mente a a crença gera a crença (29). A aceitação do cristianismo supõe o estar imbuído das opiniões e dos sentimentos religiosos da Religião Natural; em ambos, os estados da mente implicados e os hábitos de pensamento são os mesmos (30). É indispensável esse trabalho de inclusão e de entrançamento dos elementos envolvidos no acto de crer, de tradução da razão implícita em razão explícita, porque a Religião Natural, intimamente relacionada com a consciência – o mestre interior que ilumina a nossa percepção do bem e do mal e suscita em nós sobretudo o sentimento da culpa e da expiação e nos mostra Deus como Juiz (31) -, tem em si aspectos opressivos e, de certo modo, anela por uma revelação, cuja noção é congénita à mente humana (32), abre-se secretamente à sua realização cabal e ao seu suplemento, a saber, a Religião Revelada (33). O fundamento da sua certeza em nós só pode derivar da interposição de um Poder, maior do que o ensinamentos e o argumento humanos, para tornar verdadeiras as nossas crenças e uma só as nossas mentes (34), pois existe também uma só verdade, embora difundida no número ilimitado dos seus raios. E tudo o que nos é pedido é uma «ridente cooperação com uma Providência que tudo governa» (35). Esta exposição de algumas linhas do pensamento de J. H. Newman não chega decerto para salientar o que de explosivo existe na Gramática do Assentimento, e que à Academia, com seus tribalismos filosóficos, com seus modismos e suas sujeições epocais, passou quase despercebido: a subtileza e o potencial hermenêuticos; a recusa de todo o naturalismo metafísico que tenta degradar a originalidade ontológica e espiritual da consciência; o sentido da historicidade que penetra todo o conhecimento humano tanto nas ciências como na própria inteligência da fé (cristã); a pulsação do sentido ou do significado inscrito na linguagem enquanto tal; o laço entre a compreensão individual e a sua imersão nas tradições; o vínculo indissolúvel entre a razão e o elemento «fiducial»; a «dança» dinâmica (pericorese) de intelectualidade, vontade e emoção no centro do trabalho noético; o conluio misterioso entre intelecto e imaginação que, no plano da criatividade, enreda todas as nossas actividades cogitativas, todas as nossas práticas teóricas e outras, na inquieta demanda de decifração do arcano do mundo e da ordem das coisas, em face da qual, devido à índole arquitectónica da mente, a divisão dos nossos saberes é somente «administrativa».
Artur Morão
Introdução à obra “Ensaio a favor de uma gramática do assentimento”, de John Henry NEWMAN. Assírio & Alvim (1) Cit. in ADRIAN HASTINGS, «Newman, John Henry», ADRIAN HASTINGS/ALISTAIR MASON & HUGH PYPER (Dir.), The Oxford Companion to Christian Thought, Oxford Univ. press 2000, p. 473. (2) HENRICH FRIES, «John Henry Newman», inHEINRICH FRIES/GEORG KRETSCHMAR (Dir.), Klassiker der Theologie II. Von Richard Simon bis Dietrich Bonhoeffer,Munique, Verlag C. H. Beck 1893, p. 153. (3) Ibidem, p. 158. (4) An Essay in Aid of a Grammar of Assent, Notre Dame/Londres, University of Notre Dame Press, 1979, 1992, p. 110. (5) Op. cit., p. 90. (6) Op. cit., p. 44. (7) Op. cit., p. 116. (8) Op. cit., p. 168. (9) Op. cit., p. 227. (10) Op. cit., p. 141. (11) Op. cit., pp. 192-3. (12) Op. cit., p. 194. (13) Op. cit., p. 150. (14) Op. cit., p. 192. (15) Op. cit., p. 194. (16) Op. cit., p. 239. (17) Op. cit., p. 288. (18) Op. cit., p. 130. (19) Op. cit., p. 239. (20) Op. cit., p. 151. (21) Op. cit., p. 260. (22) Op. cit., p. 285. (23) Apologia pro vita sua; cit. in Garry WILLS, Papal Sin. Structures of Deceit, Nova Iorque/Londres, Doubleday 2000, p. 265. (24) Op. cit., pp. 251 ss. (25) Op. cit., p. 269. (26) Op. cit., pp. 261 ss. (27) Op. cit., p. 177. (28) Op. cit., p. 319. (29) Op. cit., p. 321. (30) Op. cit., pp. 321, 323. (31) Op. cit., pp. 304-6, 311, 324. (32) Op. cit., p. 315. (33) Op. cit., p. 303. (34) Op. cit., p. 293. (35) Op. cit., p. 275.
Fonte: Agência Ecclesia

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