Nas semanas passadas, enquanto se recordavam os 200 anos do nascimento do cientista inglês Charles Darwin, escreveu-se muito sobre a teoria da evolução por ele elaborada para explicar a origem das espécies. O aniversário fez também aparecer na opinião pública uma polêmica, sobretudo lá fora do Brasil, entre criacionismo e evolucionismo, vistas muitas vezes como opostas e excludentes.
Rapidamente, alguns usaram a teoria da evolução para negar a existência de Deus, ou para taxar de “lendas obscurantistas” as afirmações religiosas sobre Deus Criador; a evolução foi passada como a idéia luminosa com a qual tudo se explica... Outros, para defenderem um criacionismo absoluto, tentaram de todos os modos forçar os textos bíblicos a dizerem aquilo que eles não quiseram dizer. A Sagrada Escritura não é um livro de ciências, nem pretende explicar como é feito o mundo. Talvez ficou a impressão de que Darwin foi o grande mestre que deu o golpe final na fé em Deus e que a ciência, finalmente, triunfou sobre a religião e a razão, sobre a fé. Darwin nunca afirmou isso.
Será mesmo que as duas posições precisam excluir uma à outra? A resposta é um claro NÃO, não precisam excluir uma à outra. A criação não exclui a evolução, nem o contrário. A evolução é um fato evidente e não pode ser posta em dúvida; porém, se ela explica como as coisas se diferenciam e mudam, por diversos fatores, ela, contudo, não explica a origem absoluta dessas coisas. É um fato que somente evolui e se transforma aquilo que já existe. Donde, ou de quem cada ser recebeu a existência e a ordem interna para ser aquilo que é, e não outra coisa? Do nada? Do nada, nada surge, a não ser que algum agente “crie”, isto é, dê origem, tire do nada e faça existir algo. O acaso poderia ser este fator determinante? Como seria inteligente este acaso! A teoria do acaso é absurda. É melhor crer em Deus criador, isso não é absurdo.
A evolução explica “como” as coisas chegaram a ser aquilo que são, mas não explica o fato mesmo da existência das coisas, nem sua ordem interna e seu significado. Assim também a hipótese da “explosão inicial” (Big bang), para explicar a origem do universo, poderia ser apenas uma explicação parcial: é preciso explicar como passou a existir anteriormente um “algo”, que pudesse explodir; e explicar também a existência de uma lógica maravilhosa na origem do universo, que foi capaz de organizá-lo e de torná-lo a maravilha que ele é, em vez de ser o caos infinito e permanente. Decididamente, a evolução também não explica a própria existência do universo. Mas ela, como a ciência no seu todo, procura explicar “como” as coisas existem, são feitas, funcionam e interagem. E nisso não precisam estar contra a fé em Deus; nem precisa a fé em Deus negar a ciência. O verdadeiro cientista também pode ser profundamente religioso.
Neste debate, ressurge uma questão antiga: a relação entre fé e razão, entre ciência e religião. Trata-se de duas formas diversas de aproximação da realidade: a razão requer argumentos controlados por ela e convincentes para ela mesma; daí decorre o conhecimento científico moderno, que submete tudo ao seu método próprio e verifica a possibilidade de comprovar, com instrumentos que lhe são próprios, as afirmações sobre as realidades deste mundo. Aquilo que o método científico não verifica e comprova, também não pode ser afirmado pela ciência; mas seria falso concluir logo: portanto não existe. A realidade existente é maior que o método e nem tudo cabe dentro dos limites que o método científico impõe a si mesmo. De sua parte, o conhecimento pela fé faz afirmações baseando-se na revelação divina e vai além daquilo que a ciência pode controlar. A fé não é contra a ciência, mas vai além da ciência.
Em relação ao debate sobre a relação entre a fé e a razão, o papa João Paulo II escreveu uma encíclica importantíssima, chamada Fides et ratio (A fé e a razão), que seria bom retomar e ler neste momento. E o papa Bento XVI fala frequência sobre este tema, defendendo a capacidade da razão humana para conhecer a verdade; certas tendências do pensamento moderno negam tanto o valor da fé quanto a capacidade racional do homem, caindo num ceticismo desorientador e angustiante. É importante que as duas capacidades humanas de conhecimento sejam devidamente valorizadas e não sejam contrapostas.
Não é preciso abandonar a fé em Deus criador para aceitar o fato da evolução, que faz parte da sabedoria criadora de Deus; é um dinamismo interno nas coisas, que faz com que o mundo não seja estático e morto, mas cheio de vitalidade, esperança e futuro.
Card. Odilo P. Scherer
Arcebispo de S.Paulo
Artigo publicado em O SÃO PAULO na ed. de 16.02.2009
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