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POR QUE EXISTEM ATEUS?

(Extraido do Artigo "Cientistas ateus?" de Jorge Pimentel Cintra e publicado pela Quadrante)
Realmente, essa é uma pergunta muito boa, para a qual talvez não exista uma resposta conclusiva, pois no fundo trata-se de um mistério. Para entender como se chegou a essa situação, é necessário regredir um pouco no tempo em busca das raizes do problema. Sempre houve materialistas e ateus, como Epicuro e Demócrito, já nos tempos áureos da filosofia grega; mas, para nos restringirmos aos tempos modernos, podemos começar novamente com Descartes. Uma das suas preocupações era precisamente a de estabelecer (como postulado) uma separação radical entre a fé e a razão humana, criando compartimentos estanques e incomunicáveis dentro de cada ser humano, o qual teria assim uma espécie de chave que poderia ser ligada e desligada: ora pensaria e agiria como cientista, utilizando-se só da razão, ora pensaria e agiria como homem religioso, valendo-se da fé. A religião seria, nesse esquema, algo puramente voluntário e sentimental, em que a razão não teria cabida. Um dos fatores que contribuiram para dar origem a essa atitude foram as guerras de religião do século XVI, cujas conseqüências Descartes chegou a presenciar: manifestações de fanatismo as mais diversas, em que cada grupo afirmava estar na verdade e queria convencer os demais pela força. Não é de estranhar que, até entre gente equilibrada, se levantasse a tentação de dizer que os assuntos de religião são como os sentimentos: cada qual tem os seus, como tem os seus gostos e preferências pessoais; é assunto sobre o qual de nada adianta discutir: os argumentos são muito mais passionais do que racionais. Que motivos racionais pode ter um torcedor para torcer por um time de futebol? Ora, uma vez que se afirme que todas as religiões são iguais – que dependem do gosto de cada um –, o passo seguinte é uma indiferença absoluta, que no fundo admite que nenhuma delas está na verdade e nenhuma possui valores absolutos. A conseqüência é que não vale a pena aderir a nenhuma religião oficial e muito menos praticá-la. O passo histórico seguinte foi o deísmo, corrente nascida na Inglaterra, segundo a qual Deus não seria senão o Grande Arquiteto do Universo que, tendo construido o mundo, o teria abandonado a seguir nas mãos do homem; neste caso, caber-nos-ia viver como se Deus não existisse, e portanto, seria preciso rejeitar a existência de milagres, da Providência ou de um Evangelho revelado, negando também qualquer intervenção de Deus na história humana. Cristo seria um grande profeta e até o maior dos homens, o que, na boca dessas pessoas, equivalia a negar que fosse Deus. A religião, a união com Deus, ficaria reduzida a um vago sentimentalismo, e a moral a umas simples regras de convivência entre os homens. A partir daí, alguns filósofos ingleses começaram a autodenominar-se livre-pensadores, querendo dizer com isso que estavam livres da superstição (isto é, da religião), e que aceitavam somente uma religião “natural”, sem dogmas nem ritos; adotaram o lema “liberdade, igualdade, fraternidade”, que seria assumido mais tarde pela Revolução francesa. O passo seguinte na evolução dessa linha de pensamento foi, naturalmente, o agnosticismo (se é que Deus existe, não é possível conhecê-lo), ou simplesmente o ateísmo. Por essa rota caminharam os filósofos da Ilustração francesa: Condillac, Diderot, D’Alembert, que Lênin recomendava como a melhor introdução ao “ateísmo científico”. Nessa trajetória nota-se, paralelamente à expulsão de Deus da vida e do pensamento, uma deificação do próprio homem. A atitude de Descartes atribui ao homem (à sua inteligência) qualidades que são exclusivas de Deus; Espinosa diz que o homem é parte de Deus; Kant atribui à razão humana um papel fundamental na constituição da realidade; Hegel, num panteísmo cósmico, deifica a razão humana, projetando-a como criadora de toda a realidade; e Feuerbach entroniza definitivamente o homem no lugar de Deus: “O homem é para o homem o ser supremo”, idéia plenamente aceita por Marx. Finalmente, Nietzsche, como representante de muitos outros, proclama a morte de Deus. O triste paradoxo embutido nessa atitude é que, ao tentar divinizar o homem, acabou-se por animalizá-lo, reduzindo-o a um plano infra-humano. A conclusão era lógica: se o homem não provém de cima (de Deus), só pode provir de baixo (da matéria); se a dignidade do homem provém de estar feito à imagem e semelhança de Deus, ao suprimir-se Deus suprime-se também a sua dignidade, e o homem passa a ser qualquer outra coisa: o homem é aquilo que come (Feuerbach); é puro sexo (Freud); provém do macaco (Darwin), que provém da matéria (os defensores atuais da geração espontânea), que provém do caos. Em perfeita consonância com esses princípios, pregaram-se as filosofias da inimizade: o príncipe deve dominar pelo medo (Maquiavel), o homem é o lobo do homem (Hobbes), a guerra, a luta e a contradição constituem a essência da realidade (Hegel), o ódio é o motor da história (Marx), o inferno são os outros (Sartre), devemos aprender a odiar (Lunatcharsky). Os inimigos estão dentro do próprio homem, numa tensão entre id, ego e super-ego, nos recalques, nas tensões psíquicas, no stress e nos complexos dos mais diversos gêneros. Estas breves pinceladas não têm a pretensão de ser uma análise histórica, mas penso que são suficientes para explicar uma série de características do atual estado da sociedade. Depois de tudo isso, não é de estranhar que alguns cientistas pudessem e possam desembocar no ateísmo.

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