CONFERÊNCIA DO CARDEAL TARCISIO BERTONENA UNIVERSIDADE DE HAVANA
Segunda-feira, 25 de Fevereiro de 2008
"A cultura e os fundamentos éticos da vida humana"
(...)
Todos os homens apreciam a cultura como um bem importante. Todavia, por que motivo a cultura constitui um bem? João Paulo II explicou-o magistralmente, quando recordou que "a educação consiste de modo substancial no facto de que o homem se torne cada vez mais humano, que possa "ser" mais e não somente que possa "ter" mais" (Discurso à UNESCO, 2 de Junho de 1980). Com efeito, por meio da cultura o ser humano "apura e desenvolve os seus inúmeros dotes do corpo e do espírito, com que procura submeter o universo pelo conhecimento e pelo trabalho; torna mais humana a vida social" (Gaudium et spes, 53). Se a cultura é um bem, então deve estar ao alcance de todos e não ser um luxo reservado exclusivamente a algumas elites.
Todavia, a cultura é mais do que uma simples vontade individual de adquirir novos conhecimentos. Ela possui uma fundamental dimensão histórica e comunitária e apresenta-se-nos como um grande esforço para oferecer uma visão que incuta sentido em toda a vida, compreendendo todos os seus aspectos. A este propósito, a cultura é sempre caracterizada por uma tensão que a leva a ultrapassar-se continuamente a si mesma, numa dúplice direcção: em sentido horizontal, rumo às outras culturas, com um enriquecimento recíproco; e em sentido vertical, rumo à transcendência, rumo à nascente derradeira da verdade, da beleza e do bem.
Por conseguinte, podemos dizer que a cultura é o ethos de um povo. Trata-se do seu modo de se comportar e, ao mesmo tempo, de um ideal normativo, não obstante nem sempre seja vivido e respeitado. Neste sentido, o ethos e a ética estão estreitamente ligados entre si, e não somente pela sua etimologia, mas também porque a cultura constitui o resultado da obra concreta do homem e, ao mesmo tempo, a condição do trabalho humano. Não existe cultura que não se refira a uma ética, nem uma ética desprovida de uma referência à cultura. Ambas ou conservam-se unidas ou decaem juntas.
Todavia, uma simples observação coloca diante do nosso olhar o fenómeno da diversidade cultural, uma das características mais distintas deste nosso tempo, que às vezes provoca uma saudável mudança de costumes, obrigando-nos a reexaminar as convicções consideradas imutáveis. Porém, pode chegar a provocar também uma dolorosa perda de identidade, com consequências difíceis de prever.
Para certas pessoas, a diversidade cultural e das normas de comportamento leva, de maneira inevitável, a afirmar a existência de uma norma moral comum e objectiva. A partir da experiência da diversidade deduz-se a impossibilidade de normas morais universalmente válidas. O relativismo moral afirma que uma asserção ética só seria verdadeira no contexto de uma determinada cultura. Portanto, não haveria convicções nem princípios éticos melhores em relação aos outros, e ninguém teria o direito de dizer aquilo que é bom ou mau.
As teses do relativismo cultural e do relativismo ético foram revigoradas pelo desenvolvimento da razão moderna, um processo descrito de forma magistral pelo Papa Bento XVI, na sua lição na Universidade de Regensburg. Com síntese extrema, este processo é constituído pela redução da razão a uma ciência experimental, que combina a verificação empírica com a formulação matemática. Assim, só seria racional aquilo que é susceptível de experiência e formulável matematicamente. Todavia, os grandes questionamentos da existência do homem, os problemas da ética e da estética, a metafísica e sobretudo a questão de Deus permanecem fora de qualquer consideração, enquanto são pré-científicos e desprovidos de cientificidade (cf. Discurso na Universidade de Regensburg, 12 de Setembro de 2006).
Pois bem, esta restrição da razão contemporânea conduz inevitavelmente, no plano ético, ao subjectivismo da consciência. Não obstante as tentativas de Kant, de conservar uma moral universal, depois de ter descartado a metafísica, afirmando que o único conhecimento racional possível consiste na ciência, é necessário limitar a moral ao âmbito puramente subjectivo: não seria possível falar de normas morais universalmente conhecíveis. Mas então "o sujeito decide, tendo como base as suas experiências pessoais, o que lhe parece religiosamente sustentável e a "consciência" subjectiva torna-se de modo definitivo a única instância ética" (Ibidem). A consequência é clara: deste modo o ethos e a religião perdem a sua própria capacidade de dar vida a uma comunidade e tornam-se uma questão totalmente pessoal.
O subjectivismo ético levado ao extremo conduz à situação paradoxal de ter que admitir a imoralidade como moralmente positiva. Considerando o facto de que não existe um modo de determinar o que é bom ou mau, seria necessário concluir que todos os comportamentos são igualmente válidos. O sentido comum revolta-se diante desta conclusão à qual, todavia, se chega necessariamente a partir das premissas das quais se começa.
A lógica deste dinamismo leva àquilo que Bento XVI denominou "a ditadura do relativismo". Ou seja, diante da impossibilidade de estabelecer normas comuns, com a validade universal para todos, o único critério que permanece para determinar o que é bom ou mau é o uso da força, quer a dos votos quer a da propaganda ou das armas e da coerção. "Está-se a constituir uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida somente o próprio "eu" e os seus desejos" (J. Ratzinger, Homilia na Missa "pro eligendo Romano Pontifice", 18 de Abril de 2005). A partir de tais pressupostos, seria impossível construir ou manter a vida social.
Por conseguinte, existe uma distinção fundamental, de cujo reconhecimento depende a própria subsistência da comunidade humana. Esta distinção é a linha de demarcação entre o bem e o mal. Sem esta distinção não resta outra alternativa ao reino da arbitrariedade.
Portanto, é necessário inverter o axioma do relativismo ético e postular vigorosamente a existência de uma ordem de verdade que transcende os condicionamentos pessoais, culturais e históricos, e que tem uma validade permanente. Esta ordem pertence ao campo que a filosofia denomina "lei natural". Não tenciono enfrentar aqui a problemática em redor deste termo, mas apenas sublinhar o facto de que com esta expressão se faz referência a uma ordem prévia ao homem, que ele não estabeleceu para si mesmo, que nenhum governo jamais promulgou e que ele somente pode reconhecer. Trata-se da constatação de que, diante do direito positivo, que pode ser injusto, deve existir um direito derivante da própria natureza, do próprio ser do homem. Este direito deve ser encontrado e constitui o remédio para o direito positivo.
A ideia de direito natural pressupõe um conceito de natureza estritamente associado à definição da razão. Pressupõe a ideia de que a natureza está imbuída pela razão, que nela existe um logos que o homem, com a sua razão, participação e imagem do Logos criador, pode reconhecer. A própria ciência, à qual devemos progressos inacreditáveis em todos os sectores, resultaria impossível sem a aceitação de uma racionalidade da natureza. Além disso, se o mundo constitui um simples produto do irracional, a nossa própria liberdade é, em última análise, uma ilusão.
Assim, a lei natural manifesta-se como uma espécie de "gramática" transcendente que permite o diálogo entre os povos, ou seja, um conjunto de regras de realização individual e de relacionamento entre as pessoas na justiça e na solidariedade, que está inscrita nas consciências nas quais se reflecte o sábio projecto de Deus.
A Igreja não tenciona impor a sua visão das realidades a todos os homens, como se tivesse a exclusividade do discernimento moral. Contudo, não pode renunciar ao profundo conhecimento que tem acerca do homem e da sociedade. Ela é perita em humanidade e deseja oferecer respeitosamente a sua contribuição para a criação da sociedade dos homens no meio dos quais vive.
Sobre este ponto, alguns teóricos como John Rawls ou Jürgen Habermas defenderam a necessidade do contributo das confissões religiosas para o debate público (cf. Bento XVI, Discurso na Universidade "La Sapienza", 17 de Janeiro de 2008; J. Habermas, Vorpoliti sche Grundlagen des demokratischen Rechstaates? in J. Habermas J. Ratzinger, Dialektik der Säkularisierung, pág. 34). De modo definitivo, elas desempenham um papel social não somente como elementos de integração social, que prestam subsidiariamente serviços sociais à comunidade, mas inclusive como fonte de saber e de conhecimento.
A este propósito, o Papa João Paulo II recordou que o princípio da liberdade religiosa entendido no sentido mais vasto é como que a prova dos outros direitos: "Assim como a sociedade é prejudicada quando se relega a religião ao campo particular, assim também a sociedade e as instituições civis são depauperadas quando a legislação, em violação da liberdade de religião, promove a indiferença religiosa, o relativismo e o sincretismo religioso, talvez até justificando os mesmos através de uma compreensão equivocada da tolerância. Pelo contrário, todos os cidadãos recebem benefícios disto, quando são valorizadas as tradições religiosas nas quais todos os povos se encontram arraigados e com as quais, geralmente, as populações se identificam de maneira particular" (Discurso aos participantes na assembleia parlamentar da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa OSCE, 10 de Outubro de 2003).
A objecção que se intui imediatamente é que na sociedade contemporânea as Igrejas e as confissões religiosas devem limitar a sua própria acção ao âmbito puramente pessoal dos indivíduos que desejam aderir às mesmas, mas não teriam qualquer lugar disponível na constituição de uma ética social. Afirma-se que o Estado moderno deve estar acima das religiões que, em numerosos casos, não são vistas de forma positiva e equilibrada.
Naturalmente, a laicidade sadia comporta a distinção entre a religião e a política, entre a Igreja e o Estado. Crentes e não-crentes encontram o fundamento desta distinção nas próprias palavras do Evangelho, quando Jesus Cristo recorda que é necessário "dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus" (Mt 22, 21). No entanto, esta mesma laicidade não pode significar que Deus constitui uma hipótese puramente particular e excluir deste modo a religião e a Igreja da vida pública. A célebre frase de Hugo Grocio, etsi Deus non daretur, interpretada erroneamente como fundamento do ordenamento político, "como se Deus não existisse", significou para os promotores do direito natural do século XVIII a necessidade de estabelecer princípios que tivessem uma validade permanente, "mesmo na hipótese que Deus não existisse", ou seja, com validade permanente para todos.
Como contributo dos cristãos para a construção da sociedade, o então Cardeal Joseph Ratzinger, no sugestivo contexto de Subiaco, pouco tempo antes de ser eleito Sucessor de São Pedro, lançou ao mundo uma proposta que hoje me permito recordar a todos vós: "A tentativa, levada ao extremo, de plasmar as realidades humanas renunciando completamente a Deus conduz-nos cada vez mais à margem do abismo, rumo à exclusão total do homem. Então, deveríamos inverter o axioma dos iluministas, e dizer: mesmo quem não consegue encontrar o caminho da aceitação de Deus deveria, de qualquer maneira, procurar viver e orientar a própria vida veluti si Deus daretur, isto é, como se Deus existisse. Este é o conselho que já Pascal transmitia aos seus amigos não crentes; é o conselho que gostaríamos de oferecer também hoje aos nossos amigos que não acreditam. Deste modo, ninguém se sentirá limitado na sua própria liberdade, mas todas as nossas realidades encontram aqui um apoio e um critério de que têm urgentemente necessidade" (J. Ratzinger, L'Europa nella crisi delle culture, Subiaco, 1 de Abril de 2005, Sena, Cantagalli, 2005). Edição multilíngue, com o texto em espanhol, págs. 75-84, especialmente pág. 83). Assim, chegamos ao termo do nosso percurso e retomamos a interrogação inicial. Qual é a contribuição da cultura cristã para o fundamento de uma ética da vida humana?
A resposta poderia ser a seguinte: apresentando-se como religião do logos e do amor, a Igreja oferece a sabedoria milenária, que põe à disposição de todos os povos e de todas as culturas, além disso convencida de que um diálogo e um enriquecimento recíproco são possíveis. Neste sentido, apresenta-se à sociedade como memória e como recordação da existência de um fundamento dos valores. Apresenta-se, em última análise, como uma testemunha da imortalidade. Propondo com respeito a sua própria visão do homem e dos valores, ela contribui para a crescente humanização da sociedade. Por conseguinte, a fé não destrói qualquer cultura, mas sim coopera para a purificação de tudo aquilo que entorpece a dignidade, os direitos e o desenvolvimento das pessoas e de tudo o que se opõe à humanização da sociedade. Se numa nação aumentam os âmbitos e as atitudes desumanizadoras, algo foi substancialmente lesado no ethos daquele determinado povo. A fé contribui, outrossim, para dar plenitude a tudo aquilo que é bom, verdadeiro e belo, revelando ao homem uma visão mais elevada de si mesmo e da sua convivência no seio da sociedade. Uma convivência sem valores é igual a uma cultura sem ética, é uma cultura desumanizada e desumanizante que inverte a escala dos valores e subverte o mundo.
Precisamente porque cada sociedade digna se fundamenta no princípio do valor supremo do homem, da sua responsabilidade diante da história e perante os seus semelhantes, ela tem necessidade da recordação permanente de valores que sejam duradouros, que já existiam antes dele e que continuarão a existir depois.
A sociedade precisa de pessoas que revelem mediante a sua própria vida a existência de alguns valores fundamentais e edificantes; tem necessidade de testemunhas que, com a sua existência, trabalhem para recordar a todos os homens o valor da consciência, santuário de Deus no homem, e da verdade.
Mediante figuras como o Padre Varela e uma imensa multidão de pessoas audazes que foram semelhantes a ele, os cristãos pedem unicamente a possibilidade de dar testemunho desta verdade no meio dos seus contemporâneos.
Ilustres Senhoras e distintos Senhores, pudemos reflectir sobre a cultura como auxílio e inspiração para a ética. A questão consiste em encontrar caminhos concretos a fim de que a cultura e a ética, a Igreja e a sociedade possam colaborar para construir um mundo mais humano, assente nos grandiosos valores da nossa história: a liberdade, a paz, a solidariedade, a justiça e o desenvolvimento integral da pessoa, de cada homem e de todos os homens.
Permiti-me terminar com as palavras conclusivas que o Santo Padre tinha escrito para o seu discurso à Universidade "La Sapienza" de Roma, que ele não pôde pronunciar pessoalmente por motivos amplamente conhecidos.
Dirigindo-se aos universitários de Roma, o Papa respondeu à pergunta: o que é que o Papa tem a fazer ou a dizer na Universidade? Nós podemos parafrasear estas palavras, interrogando-nos: "O que é que a cultura cristã tem a fazer ou a dizer, como fundamento ético da vida comum?". Na minha opinião, a resposta que Bento XVI ofereceu conserva toda a sua validade também para nós: o Papa a Igreja católica, poderíamos dizer os cristãos "certamente não deve procurar impor aos outros de modo autoritário a fé, que somente pode ser doada na liberdade... Com base na natureza intrínseca deste ministério pastoral, é sua missão manter desperta a sensibilidade pela verdade; convidar sempre e de novo a razão a pôr-se à procura da verdade, do bem, de Deus e, neste caminho, estimulá-la a entrever as luzes úteis que foram surgindo ao longo da história da fé cristã e, assim, sentir Jesus Cristo como a Luz que ilumina a história e ajuda a encontrar o caminho rumo ao futuro" (Alocução preparada para a inauguração do ano académico na Universidade "La Sapienza" de Roma).
Obrigado a todos!
Fonte: Vatican.va
Nenhum comentário:
Postar um comentário