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A EVANGELIZAÇÃO DA CULTURA

JOÃO PAULO II
23 de Janeiro de 1998
(...) 2. A cultura é a forma peculiar com que os homens expressam e desenvolvem os próprios relacionamentos com a criação, entre eles mesmos e com Deus, formando o conjunto de valores que caracterizam um povo e os traços que o definem. Assim compreendida, a cultura tem uma importância fundamental para a vida das nações e o cultivo dos valores humanos mais autênticos. A Igreja, que acompanha o homem no seu caminho, se abre para a vida social e busca os espaços para a sua obra evangelizadora, aproxima-se da cultura com a sua palavra e acção.
A Igreja católica não se identifica com qualquer cultura em particular, mas aproxima-se de todas elas com espírito aberto. Ao propor com respeito a sua própria visão do homem e dos valores, ela contribui para a crescente humanização da sociedade. Na evangelização da cultura, é Cristo mesmo que actua através da sua Igreja, dado que com a sua Encarnação «entra na cultura» e «traz para cada cultura histórica o dom da purificação e da plenitude» (Conclusões de Santo Domingo, 228)
«Todas as culturas são um esforço de reflexão sobre o mistério do mundo e, em particular, sobre o mistério do homem: é uma maneira de dar expressão à dimensão transcendente da vida humana» (Discurso por ocasião do 50º Aniversário da Organização das Nações Unidas, 5 de Outubro de 1995, ed. port. de L'Osservatore Romano de 14.X.95, pág. 4, n. 9). Respeitando e promovendo a cultura, a Igreja respeita e promove o homem: o homem que se esforça por tornar a sua vida mais humana, aproximando-a do mistério escondido de Deus, ainda que seja às apalpadelas. Toda a cultura tem um íntimo núcleo de convicções religiosas e de valores morais, que constitui como que a sua «alma»; é ali que Cristo quer chegar com a força purificadora da sua graça. A evangelização da cultura é como que uma elevação da sua «alma religiosa», que lhe infunde um dinamismo novo e poderoso, o dinamismo do Espírito Santo, que a leva à máxima actualização das suas potencialidades humanas. Em Cristo, toda a cultura se sente profundamente respeitada, valorizada e amada; porque toda a cultura, no mais autêntico de si mesma, está sempre aberta aos tesouros da Redenção.
3. Em virtude da sua história e situação geográfica, Cuba tem uma cultura própria, cuja formação recebeu diversas influências: a hispânica, que trouxe o catolicismo; a africana, cuja religiosidade foi permeada pelo cristianismo; a dos diferentes grupos de imigrantes; e a propriamente americana. É justo recordar a influência que o Seminário de São Carlos e Santo Ambrósio de Havana teve no desenvolvimento da cultura nacional, sob a influência de figuras como José Agustín Caballero, chamado Martí, «pai dos pobres e da nossa filosofia», e o Padre Félix Varela, verdadeiro pai da cultura cubana. A superficialidade ou o anticlericalismo de alguns sectores naquela época não são genuinamente representativos daquilo que tem sido a verdadeira idiossincrasia deste povo, que na sua história considerou a fé católica como fonte dos ricos valores cubanos que, juntamente com as expressões típicas, as canções populares, as controvérsias camponesas e o adagiário popular, tem uma profunda matriz cristã, que hoje é uma riqueza e uma realidade constitutiva da nação. 4. Ilustre filho desta terra é o Padre Félix Varela y Morales, por muitos considerado como pedra fundamental da nacionalidade cubana. Na sua pessoa, ele mesmo é a melhor síntese que podemos encontrar entre fé cristã e cultura cubana. Exemplar sacerdote havanês e patriota indiscutível, foi um pensador insigne que renovou na Cuba do século XIX os métodos pedagógicos e os conteúdos do ensino filosófico, jurídico, científico e teológico. Mestre de gerações de cubanos, ensinou que para assumir de modo responsável a existência, é preciso aprender em primeiro lugar a difícil arte de pensar correctamente e com a própria cabeça. Ele foi o primeiro a falar de independência nestas terras. Falou também de democracia, considerando-a como o projecto político mais harmonioso com a natureza humana, ressaltando ao mesmo tempo as exigências que dela derivam. Entre estas exigências, ressaltava duas: a necesssidade de pessoas educadas para a liberdade e a responsabilidade, com um projecto ético forjado no seu interior, que assumam o melhor da herança da civilização e os perenes valores transcendentais, para serem assim capazes de empreender tarefas decisivas ao serviço da comunidade; e, em segundo lugar, que as relações humanas, bem como o estilo de convivência social, favoreçam os devidos espaços onde cada pessoa possa, com os necessários respeito e solidariedade, desempenhar o papel histórico que lhe corresponde para dinamizar o Estado de Direito, garantia essencial de toda a convivência humana que quiser considerar-se democrática. O Padre Varela estava consciente de que, no seu tempo, a independência era um ideal ainda inatingível; por isso, dedicou-se à formação de pessoas, homens de consciência, que não fossem soberbos com os débeis, nem fracos com os poderosos. Exilado em Nova Iorque, fez uso dos instrumentos que estavam ao seu alcance: a correspondência pessoal, a imprensa e aquilo que poderíamos considerar a sua obra máxima, as Cartas a Elpídio, sobre a impiedade, a superstição e o fanatismo nas suas relações com a sociedade, verdadeiro monumento de ensinamento moral, que constitui a sua preciosa herança à juventude cubana. Durante os últimos trinta anos da sua vida, afastado da cátedra cubana, continuou a ensinar à distância, gerando deste modo uma escola de pensamento, um estilo de convivência social e uma atitude para com a pátria que, também hoje, devem iluminar todos os cubanos. A vida inteira do Padre Varela inspirou-se numa profunda espiritualidade cristã. Esta constitui a sua motivação mais forte, o manancial das suas virtudes, a raiz do seu compromisso com a Igreja e com Cuba: buscar a glória de Deus em tudo. Isto levou-o a crer na força do pequeno, na eficácia das sementes da verdade, na conveniência de que as transformações se realizassem com a devida gradualidade, até chegar às grandes e autênticas reformas. Quando se encontrava no final do seu caminho, alguns momentos antes de fechar os olhos para a luz deste mundo e de os abrir para a Luz inextinguível, cumpriu a promessa que sempre fizera: «Guiado pela tocha da fé, caminho rumo ao túmulo em cuja borda espero fazer, com a graça divina e com o último suspiro, uma profissão da minha fé firme e um voto ardoroso pela prosperidade da minha pátria» (Cartas a Elpídio, tomo I, carta 6, pág. 182).
(...)
A Igreja e as instituições culturais da nação devem encontrar-se no diálogo e, assim, cooperar para o desenvolvimento da cultura cubana. Ambas possuem um caminho e uma finalidade comuns: servir o homem, cultivar todas as dimensões do seu espírito e fecundar a partir de dentro todas as suas relações comunitárias e sociais. As iniciativas já existentes neste sentido devem encontrar apoio e continuidade numa pastoral para a cultura, em diálogo permanente com pessoas e instituições do âmbito intelectual. (...)
Fonte: Vatican.va

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