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DEVE HAVER COERÊNCIA ENTRE FÉ E VIDA NA PARTICIPAÇÃO E COMPORTAMENTO DOS CATÓLICOS NA VIDA PÚBLICA

Sobre algumas questões relativas
à participação e comportamento dos católicos na vida política
A Congregação para a Doutrina da Fé, ouvido também o parecer do Pontifício Conselho para os Leigos, achou por bem publicar a presente “Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política”. A Nota é endereçada aos Bispos da Igreja Católica e, de modo especial, aos políticos católicos e a todos os fiéis leigos chamados a tomar parte na vida pública e política nas sociedades democráticas.
I. Um ensinamento constante
1. O empenho do cristão no mundo em dois mil anos de história manifestou-se seguindo diversos percursos. Um deles concretizou-se através da participação na acção política...
Através do cumprimento dos comuns deveres civis, “guiados pela consciência cristã”[7] e em conformidade com os valores com ela congruentes, os fiéis leigos desempenham também a função que lhes é própria de animar cristãmente a ordem temporal, no respeito da natureza e da legítima autonomia da mesma...
... Apenas relembrar alguns princípios próprios da consciência cristã, que inspiram o empenho social e político dos católicos nas sociedades democráticas. Fá-lo, porque nestes últimos tempos, não raras vezes sob a pressão dos acontecimentos, apareceram orientações ambíguas e posições discutíveis, que tornam oportuna a clarificação de aspectos e dimensões importantes da temática em questão.
II. Alguns pontos fulcrais no actual debate cultural e político
2. A sociedade civil encontra-se hoje dentro de um processo cultural complexo, que evidencia o fim de uma época e a incerteza relativamente à nova que desponta no horizonte...
Constata-se hoje um certo relativismo cultural, que apresenta sinais evidentes da sua presença, quando teoriza e defende um pluralismo ético que sanciona a decadência e a dissolução da razão e dos princípios da lei moral natural...
3. Uma tal concepção relativista do pluralismo nada tem a ver com a legítima liberdade dos cidadãos católicos de escolherem, entre as opiniões políticas compatíveis com a fé e a lei moral natural, a que, segundo o próprio critério, melhor se coaduna com as exigências do bem comum. A liberdade política não é nem pode ser fundada sobre a ideia relativista, segundo a qual, todas as concepções do bem do homem têm a mesma verdade e o mesmo valor, mas sobre o facto de que as actividades políticas visam, vez por vez, a realização extremamente concreta do verdadeiro bem humano e social, num contexto histórico, geográfico, económico, tecnológico e cultural bem preciso...
... Os leigos católicos têm de confrontar-se constantemente para poder ter a certeza que a própria participação na vida política é pautada por uma coerente responsabilidade para com as realidades temporais.
... A estrutura democrática, sobre que pretende construir-se um Estado moderno, seria um tanto frágil, se não tiver como seu fundamento a centralidade da pessoa...
4. Assiste-se, invés, a tentativas legislativas que, sem se preocuparem com as consequências das mesmas para a existência e o futuro dos povos na formação da cultura e dos comportamentos sociais, visam quebrar a intangibilidade da vida humana. Os católicos, em tal emergência, têm o direito e o dever de intervir, apelando para o sentido mais profundo da vida e para a responsabilidade que todos têm perante a mesma. João Paulo II, na linha do perene ensinamento da Igreja, afirmou repetidas vezes que quantos se encontram directamente empenhados nas esferas da representação legislativa têm a “clara obrigação de se opor” a qualquer lei que represente um atentado à vida humana. Para eles, como para todo o católico, vale a impossibilidade de participar em campanhas de opinião em favor de semelhantes leis (ex. LEIS ABORTISTAS), não sendo a ninguém consentido apoiá-las com o próprio voto[19]. Isso não impede, como ensinou João Paulo II na Carta Encíclica Evangelium vitae sobre a eventualidade de não ser possível evitar ou revogar totalmente uma lei abortista já em vigor ou posta em votação, que “um parlamentar, cuja pessoal oposição absoluta ao aborto seja clara e por todos conhecida, possa licitamente dar o próprio apoio a propostas tendentes a limitar os danos de uma tal lei e a diminuir os seus efeitos negativos no plano da cultura e da moralidade pública”[20].
... A consciência cristã bem formada não permite a ninguém favorecer, com o próprio voto, a actuação de um programa político ou de uma só lei, onde os conteúdos fundamentais da fé e da moral sejam subvertidos com a apresentação de propostas alternativas ou contrárias aos mesmos...
Quando a acção política se confronta com princípios morais que não admitem abdicações, excepções ou compromissos de qualquer espécie, é então que o empenho dos católicos se torna mais evidente e grávido de responsabilidade. Perante essas exigências éticas fundamentais e irrenunciáveis, os crentes têm, efectivamente, de saber que está em jogo a essência da ordem moral, que diz respeito ao bem integral da pessoa. É o caso das leis civis em matéria de aborto e de eutanásia (...), que devem tutelar o direito primário à vida, desde o seu concebimento até ao seu termo natural. (...) Do mesmo modo , há que afirmar o dever de respeitar e proteger os direitos do embrião humano. (...) Devem ser salvaguardadas a tutela e promoção da família, fundada no matrimónio monogâmico entre pessoas de sexo diferente e protegida na sua unidade e estabilidade, perante as leis modernas em matéria de divórcio: não se pode, de maneira nenhuma, pôr juridicamente no mesmo plano com a família outras formas de convivência, nem estas podem receber, como tais, um reconhecimento legal. Igualmente, a garantia da liberdade de educação, que os pais têm em relação aos próprios filhos, é um direito inalienável, aliás reconhecido nas Declarações internacionais dos direitos humanos. No mesmo plano, devem incluir-se a tutela social dos menores e a libertação das vítimas das modernas formas de escravidão (...). Não podem ficar fora deste elenco o direito à liberdade religiosa e o progresso para uma economia que esteja ao serviço da pessoa e do bem comum, no respeito da justiça social, do princípio da solidariedade humana e do de subsidariedade, segundo o qual “os direitos das pessoas, das famílias e dos grupos, e o seu exercício têm de ser reconhecidos”. Como não incluir, enfim, nesta exemplificação, o grande tema da paz? Uma visão irénica e ideológica tende, por vezes, a secularizar o valor da paz; noutros casos, cede-se a um juízo ético sumário, esquecendo a complexidade das razões em questão. A paz é sempre “fruto da justiça e efeito da caridade[22]; exige a recusa radical e absoluta da violência e do terrorismo e requer um empenho constante e vigilante da parte de quem está investido da responsabilidade política.
III. Princípios da doutrina católica sobre laicidade e pluralismo
5. Se, perante tais problemáticas, é lícito pensar em utilizar uma pluralidade de metodologias que reflectem sensibilidades e culturas diferentes, já não é consentido a nenhum fiel apelar para o princípio do pluralismo e da autonomia dos leigos em política, para favorecer soluções que comprometam ou atenuem a salvaguarda das exigências éticas fundamentais ao bem comum da sociedade....
6. O apelo que muitas vezes se faz à “laicidade” que deveria guiar à acção dos católicos, exige uma clarificação, não apenas de terminologia. A promoção segundo consciência do bem comum da sociedade política nada tem a ver com o “confessionalismo” ou a intolerância religiosa. Para a doutrina moral católica, a laicidade entendida como autonomia da esfera civil e política da religiosa e eclesiástica – mas não da moral – é um valor adquirido e reconhecido pela Igreja, e faz parte do património de civilização já conseguido ...
... A “laicidade”, de facto, significa, em primeiro lugar, a atitude de quem respeita as verdades resultantes do conhecimento natural que se tem do homem que vive em sociedade, mesmo que essas verdades sejam contemporaneamente ensinadas por uma religião específica, pois a verdade é uma só...
O Magistério da Igreja não pretende exercer um poder político nem eliminar a liberdade de opinião dos católicos em questões contingentes. Entende, invés – como é sua função própria – instruir e iluminar a consciência dos fiéis, sobretudo dos que se dedicam a uma participação na vida política, para que o seu operar esteja sempre ao serviço da promoção integral da pessoa e do bem comum. O ensinamento social da Igreja não é uma intromissão no governo de cada País. Não há dúvida, porém, que põe um dever moral de coerência aos fiéis leigos, no interior da sua consciência, que é única e unitária. “Não pode haver, na sua vida, dois caminhos paralelos: de um lado, a chamada vida ‘espiritual’, com os seus valores e exigências, e, do outro, a chamada vida ‘secular’, ou seja, a vida de família, de trabalho, das relações sociais, do empenho político e da cultura...
... Viver e agir politicamente em conformidade com a própria consciência não significa acomodar-se passivamente em posições estranhas ao empenho político ou numa espécie de confessionalismo...
IV. Considerações sobre aspectos particulares
7. Aconteceu, em circunstâncias recentes, que também dentro de algumas associações ou organizações de inspiração católica, surgiram orientações em defesa de forças e movimentos políticos que, em questões éticas fundamentais, exprimiram posições contrárias ao ensinamento moral e social da Igreja. Tais escolhas e alinhamentos, estando em contradição com princípios basilares da consciência cristã, não são compatíveis com a pertença a associações ou organizações que se definem católicas...
... Há que recusar as posições políticas e os comportamentos que se inspiram numa visão utópica que, ao transformar a tradição da fé bíblica numa espécie de profetismo sem Deus, instrumentaliza a mensagem religiosa, orientando a consciência para uma esperança unicamente terrena que anula ou redimensiona a tensão cristã para a vida eterna.
A Igreja ensina que não existe autêntica liberdade sem a verdade ...
8. A tal propósito, convém recordar uma verdade que hoje nem sempre é bem entendida ou formulada com exactidão na opinião pública corrente; a de que o direito à liberdade de consciência e, de modo especial, à liberdade religiosa, proclamado pela Declaração Dignitatis humanae do Concílio Vaticano II, está fundado sobre a dignidade ontológica da pessoa humana e, de maneira nenhuma, sobre uma inexistente igualdade entre as religiões e os sistemas culturais humanos. Nesta linha, o Papa Paulo VI afirmou que “o Concílio, de modo nenhum, funda um tal direito à liberdade religiosa sobre o facto de que todas as religiões e todas as doutrinas, mesmo erróneas, tenham um valor mais ou menos igual; funda-o, invés, sobre a dignidade da pessoa humana, que exige que não se a submeta a constrições exteriores, tendentes a coarctar a consciência na procura da verdadeira religião e na adesão à mesma”. A afirmação da liberdade de consciência e da liberdade religiosa não está, portanto, de modo nenhum em contradição com a condenação que a doutrina católica faz do indiferentismo e do relativismo religioso; pelo contrário, é plenamente coerente com ela.
V. Conclusão
9. As orientações contidas na presente Nota entendem iluminar um dos mais importantes aspectos da unidade de vida do cristão: a coerência entre a fé e a vida, entre o evangelho e a cultura, recomendada pelo Concílio Vaticano II. Este exorta os fiéis “a cumprirem fielmente os seus deveres temporais, deixando-se conduzir pelo espírito do evangelho. Afastam-se da verdade aqueles que, pretextando que não temos aqui cidade permanente, pois demandamos a futura, crêem poder, por isso mesmo, descurar as suas tarefas temporais, sem se darem conta de que a própria fé, de acordo com a vocação de cada um, os obriga a um mais perfeito cumprimento delas”. Queiram os fiéis “poder exercer as suas actividades terrenas, unindo numa síntese vital todos os esforços humanos, familiares, profissionais, científicos e técnicos, com os valores religiosos, sob cuja altíssima jerarquia tudo coopera para a glória de Deus”.
O Sumo Pontífice João Paulo II na Audiência de 21 de Novembro de 2002 aprovou a presente Nota, decidida na Sessão Ordinária desta Congregação, e mandou que fosse publicada.
Roma, sede da Congregação para a Doutrina da Fé, 24 de Novembro de 2002, Solenidade de N. S. Jesus Cristo Rei do Universo.
X Joseph Card. Ratzinger
Prefeito
X Tarcísio Bertone, SDB
Arcebispo emérito de Vercelli
Secretário

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