por Gabriel Zanotti
Publicado em 26 de janeiro de 2007
1 – O FUNDAMENTO ÚLTIMO ONTOLÓGICO
Alguém pode ser contrário ao aborto voluntário por muitos motivos. Entre os mais complexos, poderíamos enumerar os religiosos, filosóficos e científicos. Não vemos nenhum problema em que cada um acentue razões diferentes e menos ainda no diálogo entre as diversas perspectivas. O problema é que, às vezes, os motivos se misturam, isto é, confundem-se, produzindo, precisamente, confusão, tanto no emissor quanto no destinatário da mensagem anti-abortista.
Recentemente, observa-se a tendência a argumentar contra o aborto a partir do código genético. O argumento parece, em princípio, irrefutável. Desde o primeiro momento da concepção, a totalidade da carga cromossômica humana já está presente e, portanto, a pessoa humana é tal desde o início de sua concepção. Esse resultado vem com as suas conseqüências éticas óbvias: não pode ser eliminada, não se pode fazer experimentos com ela, não pode ser congelada etc. Agora, os anti-abortistas que argumentam dessa maneira, colocando essa tese como primeira e principal, não percebem, em nossa opinião, que estão se colocando em uma posição débil.
Em primeiro lugar, a teoria do código genético é uma teoria centífico-positiva. Logo, por mais corroborada que ela possa estar até o presente momento, sua certeza depende de todo um marco hipotético que, quanto mais alto e profundo, mais incerto. A biologia depende, ali, de certas teorias atômicas que, em pouco ou muito tempo, podem mudar, ser corrigidas, ser aperfeiçoadas etc. O que aconteceria dentro de um século se a teoria do código genético fosse, com sorte, transformada no que são hoje as teorias gravitacionais de Isaac Newton (1643-1727) diante da relatividade de Albert Einstein (1879-1955)?
As hipóteses, nesse sentido, explicam as “aparências sensíveis” dos fenômenos observados, tal como defende Santo Tomás de Aquino (1225-1274) na “Suma Teológica” (I, Q. 32, a. 1 ad 2), e, nesse sentido, são o antecedente de um raciocínio da forma “se p, então q, é assim que q, logo p”. Mas isso, desde o ponto de vista da lógica mais elementar, é uma contingência. A afirmação do conseqüente (q) não implica necessariamente a afirmação do antecedente (p) que, neste caso, é a hipótese.
Portanto, por mais corroborada que seja uma hipótese científica, ela carece de uma certeza logicamente derivada da lógica interna do método hipotético-dedutivo:
1) Agora, temos que a teoria do código genético é uma hipótese científica.
2) Logo, carece de uma certeza logicamente derivada do método utilizado.
3) Logo, passar dessa carência de certeza à certeza de que a pessoa é tal desde o primeiro momento da concepção, é um erro epistemológico, uma extrapolação metodológica.
Em segundo lugar, que alguma coisa seja ou não uma pessoa é uma questão ontológica. A biologia não pode inferir, “a partir de suas premissas”, se algo é pessoa ou não. Passar da biologia à ontologia é também uma extrapolação.
Em última instância, quem argumentar contra o aborto colocando como premissa fundamental o código genético, estará transportando a margem de incerteza própria da ciência positiva à posição moral que quer defender, na qual não se pretende incerteza.
Em nossa opinião, o fundamento último de que a pessoa é tal desde o primeiro momento da concepção é ontológico, não científico-positivo. O desenvolvimento de uma pessoa é acidental, não é essencial, ao que a pessoa é.
Por sua vez, as potências próprias da pessoa, isto é, inteligência e vontade, não têm por que estar sempre exercidas ou totalmente desenvolvidas. Pois toda potência é tal no ato primeiro, e quando se exerce passa ao ato segundo. Uma criança de dois dias tem, nesse sentido, a potência em ato primeiro de caminhar, mesmo que não a exerça em ato segundo.
Logo, dadas estas premissas, a pessoa humana é tal desde o primeiro momento de sua concepção, pois o momento de seu desenvolvimento é acidental à sua essência e suas potências específicas como pessoa encontram-se em ato primeiro, se bem que nem sempre em ato segundo.
Naturalmente, as premissas aludidas podem não ser aceitas, caso não se aceite o contexto filosófico que as sustenta, mas a diferença com a teoria do código genético é que, caso sejam aceitas, não dependem de testes empíricos nem estão submetidas a eventuais mudanças de paradigma, como é o caso das teorias científico-positivas. Apresentam, nesse sentido, uma certeza proporcional à conclusão moral à qual se quer chegar. Nesse sentido, o fundamento “último” da rejeição do aborto é ontológico.
Isto não implica que a filosofia, neste aspecto ontológico, não possa e/ou não deva dialogar com a ciência. Ao contrário, o diálogo é sempre frutífero, sempre que não haja extrapolação. A extrapolação não é diálogo, mas invasão de territórios epistemológicos.
Por isso, uma vez expresso o fundamento último (e primeiro na ordem do ser), o diálogo com a ciência atual implica recordar que a biologia contemporânea parece aportar conclusões que em nada o contradizem.
2 – A ARGUMENTAÇÃO DENTRO DA IGREJA
Santo Tomás de Aquino não pensava que a pessoa humana era tal desde o primeiro momento da concepção. As distinções ontológicas entre substância, acidente, essência, potência em ato primeiro e ato segundo estavam nele plenamente afirmadas; contudo, afirmava, tomando a teoria da “animação retardada” de Aristóteles (384-322 a.C.), que a pessoa humana era criada tal por Deus depois da transformação sucessiva de forma vegetativa a sensitiva no desenvolvimento do feto. Em nossa opinião, cometia um erro, pois sua própria tese da unidade substancial deveria tê-lo conduzido a outra conclusão. Porém, da mesma forma opunha-se ao aborto afirmando que aquilo que estava em potência de ser pessoa não devia ser eliminado.
A Igreja Católica, até 1974, não se pronunciou a favor da tese da animação retardada; também não se pronunciou contrária a ela; nem tampouco a favor ou contrária à animação desde o primeiro momento da concepção. Tanto uma como outra posição, e muito mais as hipóteses biológicas, “eram” opináveis para o Magistério Romano. Este último utilizava uma argumentação que o colocava por cima destes debates e, como uma verdade de razão necessária para a Fé, era afirmada com o peso da autoridade magisterial. Essa argumentação é muito simples e semelhante à parte final da posição de Santo Tomás de Aquino. Consiste em afirmar que, independentemente do momento da concepção, o que presumivelmente é uma pessoa não deve ser morto, pois a “dúvida a favor” não autoriza eticamente o ato de matar, mas sim o contrário (assim como, segundo o clássico exemplo, quem está caçando e tem a impressão de que o que está se movendo pode ser uma pessoa e não um cervo, não deve atirar).
A “Declaração ‘Quaestio de Abortu’: sobre o aborto provocado” da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, de 18 de novembro de 1974, era clara e distinta neste ponto. Ela se apoia, por certo, na teoria do código genético, mas tem consciência de suas limitações e coloca as coisas em seu ponto: “não pertence às ciências biológicas dar um juízo decisivo sobre questões propriamente filosóficas e morais, como são a do momento em que se constitui a pessoa humana e a da legitimidade do aborto. Ora, sob o ponto de vista moral, isto é certo mesmo que porventura subsistisse uma dúvida concernente ao fato de o fruto da concepção ser já uma pessoa humana: é objetivamente um pecado grave ousar correr o risco de um homicídio. ‘É já um homem aquele que o virá a ser’ (Tertulliano, “Apologeticum”, IX, 8: P.L. I, 371-372)” (§ 13).
Na “Instrução ‘Donum Vitae’: sobre o respeito da vida humana nascente e a dignidade da procriação”, de 22 de fevereiro de 1987, da mesma Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, a argumentação parece inclinar-se a favor de que a vida humana é tal desde o primeiro momento da concepção sobre a base da biologia atual. A distinção entre os níveis científico, filosófio e teológico pressupõe-se, mas por razões apologéticas – óbvias em um documento desta classe – a argumentação apresenta-os muito juntos: “(...) portanto, desde o primeiro momento da sua existência, isto é, a partir da constituição do zigoto, exige o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade corporal e espiritual. O ser humano deve ser respeitado e tratado como pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde aquele mesmo momento devem ser-lhe reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais, antes de tudo, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida” (I.1). Felizmente, esse “portanto” com a que o parágrafo se inicia possui este esclarecimento epistemológico imediatamente prévio: “É certo que nenhum dado experimental, por si só, pode ser suficiente para fazer reconhecer uma alma espiritual; todavia, as conclusões da ciência acerca do embrião humano fornecem uma indicação valiosa para discernir racionalmente uma presença pessoal desde esta primeira aparição de uma vida humana: como um indivíduo humano não seria pessoa humana? O Magistério não se empenhou expressamente em uma afirmação de índole filosófica, mas reafirma de maneira constante a condenação moral de qualquer aborto provocado. Este ensinamento não mudou e é imutável.” (I.1).
Oito anos mais tarde, na importante encíclica “Evangelium Vitae”, de João Paulo II, promulgada em 25 de março de 1995, o modo de argumentar parece ir por caminhos semelhantes, citando, inclusive, o documento de 1987: “Não podendo a presença de uma alma espiritual ser assinalada através da observação de qualquer dado experimental, são as próprias conclusões da ciência sobre o embrião humano a fornecer ‘uma indicação valiosa para discernir racionalmente uma presença pessoal já a partir desta primeira aparição de uma vida humana: como poderia um indivíduo humano não ser uma pessoa humana?’” (§ 60).
Mas desta vez, desde um ponto de vista hermenêutico, o esclarecimento epistemológico é mais claro e, além do mais, “posterior” ao texto recém citado: “Aliás, o valor em jogo é tal que, sob o perfil moral, bastaria a simples probabilidade de encontrar-se em presença de uma pessoa para se justificar a mais categórica proibição de qualquer intervenção tendente a eliminar o embrião humano. Por isso mesmo, ‘independentemente dos debates científicos e mesmo das afirmações filosóficas com os quais o Magistério não se empenhou expressamente’, a Igreja sempre ensinou – e ensina – que tem de ser garantido ao fruto da geração humana, desde o primeiro instante da sua existência, o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade e unidade corporal e espiritual (...)” (§ 60, o grifo é nosso).
Apesar dos documentos da Igreja Católica conferir força, uns mais, outros menos, a certos argumentos científicos e filosóficos, podemos ver que quando vêm com todo o peso de sua autoridade magisterial, a força argumentativa se concentra num argumento moral que, em si, é de razão, mas é também próximo à Fé, por estar afirmado com a autoridade do Magistério Romano em matérias que lhe são próprias e que não são, por conseguinte, questões livres entre teólogos.
3 – CONCLUSÕES FINAIS
De tudo o que foi afirmado, podem inferir-se os seguintes pontos:
) A fundamentação última da rejeição do aborto procurado não consiste numa hipótese científica.
2) Em nossa opinião, a fundamentação última da rejeição do aborto é, “per se”, que a pessoa humana é tal desde o primeiro momento da concepção, estando isto fundamentado em uma ontologia que não se submete ao teste empírico.
3) “Per accidens”, isto é, ainda que se duvide da afirmação anterior, a mera dúvida de se o embrião é humano ou não, justifica a rejeição do aborto procurado diretamente.
4) O magistério pontifício baseou sua rejeição ao aborto acima de tudo nesta última argumentação, principalmente quando sua autoridade magisterial está em jogo.
5) Neste último caso – quando a autoridade magisterial está em jogo – é prudente que o Magistério Romano diferencie cada vez mais, com maior claridade, o argumento moral principal de outros que, com relação à Fé, sejam opináveis.
Tradução de Claudio Téllez
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