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A PROPOSTA DE BENTO XVI

Bento XVI, em diversas ocasiões, mostrou sua preocupação pelo destino da Europa e, por conseguinte, da civilização ocidental, cujas bases constitutivas são, como dissemos, a fé cristã e o ideal grego da vida segundo a razão. Nossa cultura atual, ao optar por uma razão que não ousa mais encarar o ser, coloca em xeque suas raízes mais profundas. Nesse sentido, vivemos uma crise de identidade, isto é, um momento agudo que exige de nós uma decisão: Que civilização queremos? Mostraremos ser fiéis às nossas raízes? Ou continuaremos a buscar uma civilização que, por se submeter totalmente a uma concepção estreita de razão, talvez pudesse ser chamada de “civilização da técnica”? Sim; a razão fechada à infinita transcendência do ser acaba por reduzir-se a uma razão técnica, operacional; uma razão que não ousa considerar sua abertura ao transcendente facilmente mostra a pretensão de tudo submeter à “domesticação” do sujeito, erigindo, assim, um mundo “feito” segundo as medidas do eu humano.
Pode-se dizer que, para sermos fiéis às nossas raízes, é preciso que nos proponhamos a alargar nossa concepção de razão, o que equivale a adotar o uso da razão que vigorou em espíritos brilhantes como Platão, Arisóteles, Plotino, Agostinho, Tomás de Aquino... Não se trata aqui de uma volta ao passado. A história segue adiante. Trata-se, antes de tudo, de mostrar fidelidade às exigências mais profundas do ser humano como tal. Fechar ao homem a abertura para a infinita transcendência do ser, querendo reduzi-lo ao mundo dos fenômenos, equivale a truncar-lhe a natureza. A fidelidade às nossas raízes greco-cristãs não se reduz a mera fidelidade histórico-cultural, mas deve ser entendida como fidelidade ao homem mesmo, cuja essência, aberta à consideração das razões do ser e do viver, mostra-se capaz de elevar-se aos píncaros da vida intelectual pelo reconhecimento da Transcendência real e, ao mesmo tempo, capaz de acolher na fé a Palavra de Salvação que a generosidade divina lhe dirige.
Em sua famosa Aula Magna na Universidade de Regensburg, em setembro de 2006, intitulada Fé, razão e universidade: recordações e reflexões [1], Bento XVI tratou de temas fundamentais para a questão da relação entre fé e razão e do futuro de nossa civilização. O Papa afirmou decididamente que a fé cristã não é alheia à razão, isto é, não pode se reduzir à irracionalidade. E sustentou que as melhores conquistas da filosofia grega em sua luta contra mito pertencem intrinsecamente à fé cristã. O encontro entre pensamento grego em sua melhor parte e a fé cristã não pode ser visto como uma simples contingência histórica, uma vez que o Deus da Bíblia é Logos, de modo que buscar exercitar a razão e procurar viver segundo seus ditames está em profunda sintonia com a fé no Deus que é Ele mesmo Inteligência absoluta. Assim, Bento XVI sentiu-se muito à vontade para citar o imperador Miguel II Paleólogo, segundo o qual não agir com a razão é agir contra a natureza de Deus. Essa afirmação é fundamental e decisiva para as questões que estamos considerando.
Ao contrário de muitos discursos teológicos que cheiram a fideísmo e de muitas filosofias voluntaristas[2] e agnósticas, Bento XVI diz claramente que a Tradição da Igreja posiciona-se do lado da razão, isto é, de uma razão capaz de dizer algo de Deus e, assim, colocar-se em sintonia com a fé. Entre o homem, criatura racional, e Deus, que é Logos, existe uma analogia. Embora as diferenças entre os dois sejam infinitamente maiores do que as semelhanças, não há separação total. Vejamos as palavras do Papa:
“[...] a fé da Igreja sempre se ateve à convicção de que entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito criador e nossa razão criada, existe uma verdadeira analogia, na qual, por certo – como afirma, em 1215, o IV Concílio de Latrão – as diferenças são infinitamente maiores que as semelhanças, mas não até o ponto de abolir a analogia e sua linguagem”.[3] A fé, para ser ela mesma, segundo Bento XVI, não precisa lançar fora a razão. Muito ao contrário, pertence à natureza mesma da fé cristã o conúbio com a razão, pois que agir irracionalmente é agir contra a natureza de Deus. Nesse mesmo sentido, a encíclica Spe Salvi afirma: “Sem dúvida, a razão é o grande dom de Deus ao homem, e a vitória da razão sobre a irracionalidade é também um objetivo da fé cristã” (n. 23).
Mas de que razão o Papa fala? Que razão pode, de fato, estabelecer relações amigáveis e harmoniosas com a fé? Certamente não é a razão que se tornou apenas um instrumental lógico destinado à manipulação dos fenômenos; não é a razão que, esquecendo-se de seu fundamento, fechou-se na imanência do sujeito em sua transcendência puramente lógica. Em outras palavras, não é o modelo restrito de razão que tem vigorado na modernidade, que faz das ciências empiriológicas a última palavra em termos de racionalidade, que poderá constituir um diálogo frutuoso com a fé. O Papa nota que esse modelo restrito, que fez sucesso pelas conquistas científico-técnicas, é uma síntese entre platonismo ou cartesianismo e empirismo, uma vez que professa a inteligibilidade da matéria (platonismo ou cartesianismo) e, ao mesmo tempo, fecha-se na “utilização funcional da natureza para nossas finalidades, onde só a possibilidade de controlar verdade ou falsidade através da experiência é que fornece a certeza definitiva”[4] (empirismo).
Com essa racionalidade restrita, os horizontes da vida se tornam por demais estreitos, e o próprio homem é que se vê ameaçado em sua constituição fundamental. As grandes questões humanas – De onde vim? Para onde vou? O que devo fazer? -, decisivas para o sentido da vida, simplesmente não têm lugar no âmbito de uma racionalidade que se curva sobre a própria finitude, esquecendo-se de sua abertura para a infinitude do ser. A “ciência” fica, assim, restrita ao mundo dos fenômenos, e vê como ilegítima toda tentativa de ultrapassagem, de meta-física. Mas “se a ciência no seu conjunto é apenas isto, desse modo então o próprio homem sofre uma redução”.[5] É a concepção de homem que está em jogo. Que é o homem?
O que, então, propõe Bento XVI? Não propõe com certeza uma volta ou uma rejeição da modernidade, pois que “tudo o que é válido no desenvolvimento moderno do espírito há de ser reconhecido sem reservas: todos nos sentimos agradecidos pelas grandiosas possibilidades que isso abriu ao homem e pelos progressos que foram proporcionados no campo humano”.[6]
Na verdade, Bento XVI tem em vista não uma retirada, não uma crítica negativa. Sua proposta é deveras positiva, e consiste num “alargamento do nosso conceito de razão e do seu uso”.[7] Aqui está o ponto nevrálgico de toda a problemática. Não havíamos constatado que a concepção de razão tem sofrido, já desde os fins da Idade Média, uma redução?
O Papa, na verdade, não pede uma coisa absurda. Deseja simplesmente que a razão tenha também em consideração a busca da sabedoria. A razão, segundo o Papa, não deveria nunca deixar de exercer sua dimensão sapiencial. E que é essa dimensão sapiencial? É a capacidade da razão de ousar passar dos fenômenos ao fundamento, como, aliás, já alertara o Papa João Paulo II em sua grande Encíclica Fides et Ratio. Bento XVI porpõe, assim, abertura e alargamento contra o fechamento e a estreiteza. Deseja uma ultrapassagem dessa limitação autodecretada na modernidade. Ora, essa proposta do Papa está em consonância com a vocação originária da Filosofia, que, em seus albores, entendia-se como uma verdadeira busca da sabedoria, a busca de uma visão básica do sentido das coisas, uma cosmovisão que, inclusive, portava orientações éticas.
Aliás, as ciências empiriológicas, que têm tido um grande sucesso no descobrir as leis que regem a matéria, colocam uma questão que nos convida a ir além das próprias ciências: Por que as leis da matéria apresentam uma simetria com a inteligência humana? Qual a razão da inteligibilidade mesma das leis que regem o comportamento da matéria? Tal questão levará, sem dúvida, o pensador a ver que só uma Inteligência absoluta, causa transcendental tanto da inteligência humana como da matéria, pode garantir essa simetria inteligível entre o espírito humano interrogante e a matéria com suas leis.
[1] BENTO XVI. Fé, razão e universidade. Recordações e reflexões. Santa Sé. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20060912_university-regensburg_po.html. Acesso em março de 2009. [2] Por “filosofias voluntaristas” entendem-se os discursos filosóficos que colocam no fundamento do ser a vontade distante ou dissociada da inteligência, o que acaba por levar ao irracionalismo. [3] Ibidem. [4] Ibidem. [5] Ibidem. [6] Ibidem. [7] Ibidem.

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