Padre Elílio de Faria Matos Júnior
A genialidade de Tomás de Aquino no campo da metafísica foi ressaltada, entre outros, por Étienne Gilson em sua grande publicação L’être et l’essence.[1] Em síntese, Gilson destaca o passo metafísico que Santo Tomás, iluminado pela noção de criação, dá para além de Aristóteles e da metafísica grega em geral, ultrapassando o nível de inteligibilidade da substância ou da essência, e alcançando um nível ulterior, o nível radical da inteligibilidade, o do esse entendido como ato de existir.
Aristóteles, em sua inquisição sobre o ser, chegou à ousia (substância) como suprema instância de inteligibilidade do real. A metafísica aristotélica é a ciência do ser enquanto ser. Quando Aristóteles trata de saber o que é o ser, ele diz que o ser se diz de muitas maneiras, mas sempre em relação a uma e mesma realidade fundamental, que é a ousia. O modo de ser fundamental é o da substância, pois que todos os demais modos de ser se resolvem nela. Tudo que é, ou é substância ou está relacionado fundamentalmente com a substância: “On nommera certaines choses des «êtres» parce qu’elles-mêmes sont des substances (ousia), d’autres parce qu’elles sont des propriétés de quelques substances, d’autres encore parce qu’elles engendrent quelque substance ou la détruisent.”[2] A metafísica para Aristóteles é, então, em última análise, destaca Gilson, a ciência que trata da substância : “C’est donc sur l’ousia, sur ses principes e sur ses causes, que devra porter la science de l’être”.[3]
Em Aristóteles, a metafísica padece, contudo, de certa ambigüidade, apesar de sua unidade estar garantida, de alguma maneira, pela unidade da substância. Tratando fundamentalmente da substância, a metafísica recebe três nomes: a) ciência do ser enquanto ser, vale dizer, ciência daquilo que diz respeito ao ser como tal (ens commune) e de tudo o que se lhe segue – e o ser, fundamentalmente, é a substância; b) filosofia primeira, isto é, ciência que trata dos primeiros princípios do ser, que são, em última análise, os princípios da substância; c) ciência teológica, enquanto investiga as causas da substância e as encontra, fundamentalmente, nos seres – substâncias - eminentemente inteligíveis, isto é, os seres imateriais, separados ou divinos. Assim entendida, a metafísica aristotélica, embora seja uma ciência una em virtude da unidade da substância, não deixa de carecer de uma unidade mais fundamental, pois que bem se vê que ela está ordenada tanto ao que há de comum entre os seres (como ciência do ser enquanto ser e ciência dos primeiros princípios), de um lado, quanto aos seres singulares, às substâncias separadas (como ciência teológica), de outro. Qual seria, pois, a última instância da unidade da metafísica? Ou, entre essas “duas” metafísicas, qual se deveria escolher? Aristóteles não resolveu a questão, diz Gilson.[4]
Santo Tomás, a partir da noção de criação que recebeu do cristianismo, operou uma profunda transformação na noção de metafísica. A última instância de inteligibilidade do real não é, para Santo Tomás, a substância ou a essência, mas o esse – entendido como ato de existir -, sem o qual nenhuma substância ou essência existiria. Aristóteles não chegou a indagar para além da substância, uma vez que a noção de criação lhe era estranha. A existência mesma – como ato supremo de perfeição – não foi tematizada pelo filósofo grego, pois que não lhe causava problema a questão da origem do universo; o relevo de sua indagação ordenava-se às substâncias que constituíam um universo ordenado que ele cria existir desde todo o sempre e cuja origem, pelo fato mesmo de o filósofo se adstringir ao mundo das substâncias, não podia ser-lhe, de modo algum, objeto de questionamento.[5] Santo Tomás, ao contrário, movendo-se no plano radical da origem do ser pela iluminação do conceito de criação, chega a Deus, segundo os recursos mesmos da razão natural, como o Existente, não simplesmente como uma substância ou essência. Nele não há composição alguma, nem mesmo a de essência e existência, composição esta que o Aquinate afirma a respeito de todo ente que não é o Ipsum Esse Subsistens. [6] Aliás, a essência do Deus de Tomás é seu próprio ato de existir; ele é purus actus essendi, e, como Ipsum Esse Subsistens, individualiza-se e se distingue de tudo o mais que possa existir. Ora, o Existente, encerrando em si mesmo toda a perfeição do ser, não pode ser senão um: “Comment, en effet, serait-t-il l’exister pur e sans mélange aucun de puissance, s’il existait, hors de lui, quelque chose de réel qu’il pût être, et pourtant il ne fût pas, ou que ne fût pas lui ?”[7] Mas como explicar que outros entes existam – e de fato existem - , se o Existente encerra toda a perfeição do existir, ou melhor, se o Existente é toda a perfeição do existir? Santo Tomás diz que todo ente que não é o Existente existe na medida em que participa do Puro Ato de Existir. Assim, os entes recebem do Ser subsistente o seu ato de existir, de modo que, em vez de serem o seu ser (esse), o têm. Por isso diz Gilson: “[...] il faut admettre une différence radicale entre ce qui est l’exister même, et ce que l’a. »[8]
Desse modo, Santo Tomás alcançou um nível mais radical – o nível radicalíssimo, pode-se dizer – da inteligibilidade do real. Fora do esse – actus essendi - só há o nada. E sem o esse, nenhuma substância ou essência existiria ou seria posta fora do nada. Em relação aos entes que não são o Ser mesmo, há real composição de essência e existência. Se a forma lhes é verdadeiramente um ato, como ensinou Aristóteles, ela o é dentro de uma ordem precisa: a ordem da substancialidade. Mas, como Santo Tomás viu para além da ordem da substancialidade, o ato último é o ato de existir, que, propriamente, não faz da substância uma substância, mas a faz existir.[9] Assim, o Doutor Comum podia afirmar sem pestanejar: “hoc quod dico esse est inter omnia perfectissimum... hoc quod dico esse est actualitas omnium actuum... hoc est perfectio omnium perfectionum”.[10]
No domínio metafísico da “causa do ser” (teologia), Aristóteles não podia alcançar uma causa absolutamente primeira. A filosofia grega como tal desconhecia uma causa absolutamente primeira, e com Aristóteles não era diferente. Os entes divinos e separados eram causas, sem dúvida, e de modo especial o Primeiro Motor Imóvel, mas havia uma franja do ser que lhes escapava. Num universo como o de Aristóteles, em que o Primeiro Motor Imóvel não é criador, a matéria é também, a seu modo, causa primeira.
Gilson destaca que, ao atingir o ser como ato de existir, Santo Tomás alcançou a unidade derradeira que faltava ainda à metafísica aristotélica. Como se notou acima, Aristóteles não havia decidido qual a direção seria a fundamental e determinante em sua metafísica, pelo que ela padecia de certa ambigüidade. Ao atingir, porém, o ser como ato, como perfeição última, o Aquinate esteve em condições de afirmar que a metafísica está toda orientada para o Existente. Santo Tomás mantém, assegura Gilson, os dois pontos de vista da metafísica, mas os coloca em uma ordem de subordinação hierárquica, de modo que a ordem do “ser enquanto ser”, enquanto ordem do nível ontológico da substancialidade, está subordinada à ordem da causa do “ser enquanto ser”, enquanto ordem do nível ontológico superior, o da existência. Tal subordinação conduz o pensamento, em última instância, a Deus, o Existente. A metafísica, assim, está toda ordenada para o Ato Puro de Existir.[11]
[1] GILSON, Étienne. L’être et l’essence. 3.ed. Paris: J. Vrin, 2000.
[2] GILSON, L'être et l'essence, p. 91.
[3] GILSON, L'être et l'essence, p. 91.
[4] “Entre ces deux metaphisiques, il semblerait qu’on fût tenu de choisir. On ne voit pourtant pas qu’Aristote l’ait fait […]” (GILSON, p. 84).
[5] “Aristote n’a pas su que le monde n’a pas toujours existé, mais c’est que, identifiant l’être à la substance, il n’avait en effet aucune raison de poser un tel problème » (GILSON, L'être et l'essence, p. 99).
[6] Santo Tomás ensina que nos entes materiais há dupla composição: a composição de matéria e forma e a de essência (id quod est) e existência (id quo est); já os entes imateriais, embora sejam privados da composição de matéria e forma, neles há composição de essência e de existência. Só Deus, Ipsum Esse Subsistens, carece de toda composição e é absolutamente simples.
[7] GILSON, L'être et l'essence, p. 116.
[8] GILSON, L'être et l'essence, p. 116.
[9] “La forme est l’acte ultime dans l’ordre de la substantialité. Si l’esse doit s’y ajouter, ce ne sera pas pour en faire une substance, mais pour faire que cette substance existe » (GILSON, L'être et l'essence, p. 104).
[10] SANTO TOMÁS. Questiones disputatae De potentia, q. VII, a. 2, ad 9.
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