Que futuro para o Cristianismo no Ocidente? Esta interrogação não é nova. Em 1977, Jean Delumeau publicava um ensaio intitulado "O Cristianismo está prestes a morrer?". Mais próximo de nós, René Rémeond, na sua obra "Cristianismo em estado de acusação" (2001), acusava: "Hoje, o Cristianismo padece de uma espécie de descrédito". Diria que num certo sentido esta situação é devida à própria natureza da importância histórica da mensagem de Jesus Cristo e da sua transmissão ao longo do tempo: o seu fundador morre na cruz; os primeiros apóstolos não eram pensadores, nem estrategas; a Igreja conheceu heresias, divisões e escândalos. Por conseguinte, é inevitável que um observador sensato levante a questão acerca da existência e da duração de tal grupo religioso. Quantas vezes já se sepultou a Igreja: Nietzsche declarou que "terminou a época das religiões; Deus morreu". Os totalitarismos do século passado disseram exclusivamente isto. Na França, há cem anos, à pergunta de Jaurés sobre o profundo objectivo da sua política, Jules Ferry retorquiu: "A minha finalidade? Organizar a humanidade sem Deus". Os sociólogos e alguns pensadores deleitavam-se em descrever o Cristianismo do futuro sem uma juventude, dividido e insidiado pelo fechamento da sua identidade, que sucumbia sob os golpes de aríete das novas religiões conciliadoras ou de formas antigas e novas de incredulidade e de ateísmo.
Além disso, é inevitável constatar que o coração do Cristianismo se deslocou gradualmente do Norte para o Sul. Algumas previsões delineiam para o ano 2025 supondo que a taxa das conversões não varie de maneira substancial dois biliões e 600 milhões de cristãos, dos quais 663 milhões na África, 640 na América Latina, 555 na Europa, 460 na Ásia (a Europa ocuparia a terceira posição). No ano 2050, um quinto dos três biliões de cristãos será constituído por pessoas de cor não hispânicas.
Indubitavelmente, suscita preocupação o facto de que tão poucos jovens ocidentais mantêm um contacto regular com as Igrejas: um elevado número de crianças cresce sem jamais ter aberto uma Bíblia, sem conhecer os ritos cristãos e sem saber que se pode anunciar Deus. Seria necessário mencionar também a diminuição do número dos sacerdotes, o decréscimo da prática religiosa, a dificuldade de transmitir a fé com uma linguagem mais acessível, etc.
No entanto, o fenómeno religioso está longe de ter desaparecido. Os cristãos não renunciaram à missão que lhes é própria. Este Cristianismo de que certas pessoas previam o desaparecimento penso naquele corajoso funcionário municipal de Valence que, depois de ter constatado no dia 20 de Agosto de 1799 a morte "de um certo Giannangelo Braschi, que exercia a profissão de Pontífice (Pio VI)", enviou o seu relatório para Paris, anunciando que o Papa que acabara de falecer era certamente o último da história sim, este Cristianismo moribundo, demonstra uma vitalidade surpreendente e reserva muitas surpresas. Numa tarde de Outubro de 1978 o então Arcebispo de Cracóvia, no coração da Europa "marxistizada", foi chamado a ocupar a Cátedra de Pedro! E nós que vivemos em Roma, ou que podemos visitar as Igrejas locais, temos da Igreja uma visão confortadora: uma Eucaristia celebrada na África, a visita a um seminário na América Latina e uma igreja de uma cidade da Ásia repleta de fiéis para a missa quotidiana não fazem de modo algum pensar numa Igreja em agonia. Sem falar das Jornadas Mundiais da Juventude, ou das celebrações das exéquias do Papa João Paulo II. Vem-me ao pensamento uma conferência proferida precisamente aqui por Harvey Cox, em 1968. Ele tinha apresentado a tradução em língua francesa do seu livro "A cidade secular", despertando o entusiasmo de alguns dos meus coirmãos do Seminário francês e prevendo a libertação do homem moderno de todos os arcaísmos religiosos e dos rituais antiquados. No entanto, um ano mais tarde publicava "A festa dos loucos" e, alguns anos depois, "O retorno do sagrado", reconhecendo que um mundo sem preocupações espirituais é irreal!
Na verdade, o Cristianismo ainda tem muito a dizer. A nossa palavra é esperada, ainda que não seja tomada como ponto de referência. O nosso testemunho interpela-nos. É impressionante constatar que no centro deste mundo novo que vemos abrir-se, sem saber o que será, todos nós crentes e não-crentes, optimistas e pessimistas somos obrigados a levantar as interrogações fundamentais, estamos condenados a formular as perguntas essenciais. É a graça do nosso tempo! Num artigo publicado na revista "Esprit" de Fevereiro de 1966, intitulado "Prospective et utopie, prévision économique et choix éthique", Paul Ricoeur observava que o homem moderno tem diante de si mesmo quatro interrogações, ou seja, da autonomia, do desejo, do poder e do contra-senso: o homem contemporâneo não quer prestar contas a ninguém, rejeitar ser criatura e é o triunfo do individualismo; na medida em que são satisfeitas todas as suas necessidades fundamentais (para os mais afortunados!), ele entra no mundo do capricho e do arbitrário, "quero tudo, e desejo-o imediatamente!": esta é a sua aspiração; o conflito entre as nações e o facto de ter direitos sem qualquer dever fazem com que a pessoa mais arrogante e a mais forte imponha a sua lei: "mais e imediatamente", sim, mas para qual finalidade. Pode-se viver desprovido de pontos de referência e sem objectivos? Tudo parece ter-se tornado insignificante: o trabalho, a sexualidade e o lazer. Qualquer sacerdote que recebe as confissões dos seus companheiros de humanidade conhece a entidade deste "desencanto": o homem sonhava ser livre e acorda na escravidão...
Eis um mundo que se organiza e se projecta sem Deus. Pois bem, juntamente com Karl Rahner podemos dizer que "o homem não existe enquanto homem, a não ser quando, pelo menos como pergunta que nega e é negada, diz "Deus"" (Curso fundamental sobre a Fé).
Todavia, recentemente a situação mudou. Deus voltou a ocupar um lugar no espaço público. A religião reapareceu: pululam livros, publicações e debates televisivos. O Presidente da República francesa, Sr. Nicolas Sarkozy, ao formular os seus bons votos ao Corpo diplomático há alguns dias, não hesitou em declarar que a mudança climática e o retorno do elemento religioso constituem "os dois desafios" do mundo do século XXI. Sucessivamente, especificou com estas expressões: "Estou convicto de que estes dois desafios hão-de contribuir para dar uma estrutura à sociedade internacional do século XXI, talvez mais profundamente do que as ideologias do século XX". A precariedade do mundo, a violência das nossas sociedades e o islão, segunda religião do Ocidente, explicam em grande parte este "retorno" de Deus! no entanto, em vez de tranquilizar, as religiões causam medo. Os atentados de 11 de Setembro de 2001, o terrorismo islâmico e os conflitos no Médio Oriente não encontram a sua origem nas religiões. No entanto, há pessoas que os alimentam com ingredientes de tipo religioso. Sim, a religião voltou mas ainda é vista como um transmissor de conflitos... De qualquer maneira, nós vivemos num Ocidente multirreligioso e somos obrigados a interrogar-nos sobre a nossa identidade espiritual, acerca da nossa fé e sobre a qualidade do nosso testemunho. Quem somos verdadeiramente nós, cristãos? E quem são os outros? Levantar tais interrogações constitui uma oportunidade: a graça de um "Cristianismo frágil" (Albert Rouet). O pluralismo religioso não desperta angústia em mim. Aquilo que me preocupa é saber se os cristãos estão conscientes do tesouro que representa a sua fé, se os seus pastores lhes oferecem os instrumentos adequados para que se tornem capazes de dizer a razão da esperança que neles reside (cf. 1 Pd 3, 15) e se têm a coragem de afirmar que são diferentes.
Pois bem, os artigos publicados por "La Croix" informam-nos oportunamente sobre os esforços levados a cabo pelos católicos, fiéis e pastores, a fim de que a Igreja que nós somos venha a constituir o sinal (sacramento) daquele que "veio para que os homens tenham vida, e a tenham em abundância" (Jo 10, 10). A preocupação da prece e da formação teológica, os esforços envidados no que diz respeito a uma catequese mais incisiva e a um sentido da Igreja mais requintado, todos estes são elementos que levam a pensar que estamos a redescobrir a necessidade de uma determinada interioridade. Por outro lado, é somente no Cristianismo que se encontram tantos voluntários em acção para aliviar as situações de dificuldade. Deste modo, retomando uma expressão de uma socióloga britânica (Grace Davie), tenho a impressão de que os cristãos europeus fazem parte daqueles fiéis que vivem alguns aspectos da fé fora de qualquer vínculo com a sua Igreja ("believing without belonging", ou seja, acreditar sem pertencer à comunidade).
Então, como é que devemos olhar para o futuro? Com serenidade, uma vez que se trata do nosso futuro. Sem dúvida, somos uma minoria diligente, e os valores cristãos estão por debaixo de numerosas "convicções" laicas: a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a solidariedade e o respeito pela natureza são todos valores que encontram a própria raiz no "humus" cristão.
O Cristianismo é também criativo: novas comunidades, escolas de fé e iniciativas de todos os tipos para servir o próximo. Não se pode, outrossim, esquecer que a Igreja católica é a única instituição capaz de convocar e de congregar um grupo tão numeroso de jovens. Isto também tem o seu significado!
Ontem à tarde, ao terminar de redigir este texto, veio-me à mente um pensamento que me deixou petrificado. Compartilho-o simplesmente convosco: pergunto-me se a maior dificuldade com que o Cristianismo se embate nos seus esforços de evangelização e de transmissão da fé não consiste em ter que constatar que a maior parte dos nossos contemporâneos não sente qualquer necessidade de ser salva. A ideia de que cada um de nós precisa de um Salvador é para eles totalmente alheia! É possível, porventura, evitar Jesus Cristo?
O que podemos fazer? Tornarmo-nos cada vez mais uma Igreja que reza, que celebra e que serve. Num mundo multirreligioso seria paradoxal se os cristãos, que têm como antepassados na fé os Santos Agostinho, Bento, Domingos, Teresa de Ávila, Francisco de Sales e Isabel da Trindade para citar apenas algumas das grandiosas personalidades espirituais da tradição católica não fossem mais capazes de entrar em diálogo de amor com um Deus pessoal (pois é nisto que consiste a oração).
Oportunamente preparada e celebrada, a liturgia é sem dúvida a manifestação mais visível da presença de Deus no cerne da sociedade: a Igreja-edifício, por si mesma, recorda o facto de que nem só de pão vive o homem. A verdadeira cidade afirmava Jorge La Pira é "aquela em que os homens encontram a sua própria casa, e na qual Deus tem a sua morada". Um mundo que fosse unicamente um lugar de trabalho e de produção, e que não conseguisse ser inclusivamente o lugar da liturgia, seria invivível. Uma assembleia que celebra, demonstra que está a receber Jesus Cristo para depois O comunicar.
Se nós, cristãos, tivermos que exercer um poder, que seja o poder do coração. No mundo difícil que nós construímos, temos o dever de demonstrar que a pessoa humana não se reduz apenas àquilo que manifesta ou produz, que a família é o âmbito natural em que se aprende a amar, que muitas vezes os gestos mais simples (como dizer bom dia, ouvir ou agradecer) são suficientes para incutir renovada esperança naqueles que se sentem rejeitados ou, pior ainda, esquecidos.
Gostaria de dar o testemunho deste poder do coração, que é talvez aquele que teríamos de pôr em prática em primeiro lugar. "A Casa da Caridade" recebe em Bertinoro doze graves portadores de deficiência, dos quais se ocupam um sacerdote de setenta anos de idade, duas religiosas e cinquenta voluntários das paróquias dos arredores. Encontrei-me com Patrícia que, quando tinha trinta e sete anos, foi vítima de um aneurisma cerebral devastador, que a tornou prisioneira do seu corpo. Desde então, ela já não consegue movimentar-se nem falar, e comunica graças ao movimento das pálpebras e a um computador especial que faz correr as letras do alfabeto, permitindo-lhe assim formar as palavras. Quando me aproximei dela, vi que a sua cabeça repousava num lenço no qual estava impressa a seguinte frase: "Vivo porque alguém me ama". Qualquer comentário seria supérfluo. No entanto, digo que também este é o Cristianismo na Itália e na Europa. Poderíamos citar muitos outros exemplos. Numerosos homens e mulheres, consagrados e leigos, prodigalizam-se e encontram na sua fé a energia e a perseverança para fazer com que um dos seus irmãos ou uma das suas irmãs possa vir a acreditar que, apesar de tudo, a vida é linda, que contém uma dignidade, que a sua existência tem um sentido. E tudo isto não por um sentimento de comiseração, ou para desencargo da própria consciência, mas por causa de Jesus Cristo, que venceu o mal e a morte para a nossa salvação.
Enfim, temos a responsabilidade de anunciar o Evangelho da esperança. Juntamente com o Papa Bento XVI, podemos dizer: "A vida não é um simples produto das leis e da casualidade da matéria, mas em tudo e, contemporaneamente, acima de tudo há uma vontade pessoal, há um Espírito que em Jesus Se revelou como Amor" (Spe salvi, 5). Por conseguinte, não podemos duvidar do futuro.
Concluo, afirmando que o Cristianismo tem um bonito porvir no Ocidente e alhures se souber, como no passado, "ultrapassar os bárbaros", encontrando o caminho da renovação na fidelidade à tradição, como sempre fez. E fá-lo-á como um fermento. Quanto a nós, é-nos pedido somente que sejamos cristãos coerentes, persuadidos de que o nosso tempo é o melhor, porque Deus nos inseriu neste momento da história a fim de que possamos dar frutos. A modernidade não nos deve assustar! Nós pertencemos a este mundo enquanto cristãos e desejamos ser reconhecidos enquanto tais: "Somos cidadãos deste mundo e não desterrados!" (Cardeal G. Danneels).
(*) Cardeal Presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso
PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO CONGRESSO SOBRE O FUTURO DO CRISTIANISMO NO OCIDENTE INTERVENÇÃO DO CARDEAL JEAN-LOUIS TAURAN (*)
Centro Cultural São Luís dos Franceses,
Roma, Quinta-feira, 24 de Janeiro de 2008
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