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RELIGIÃO E CIÊNCIA

Intervenção de D. Manuel Clemente no Ciclo «Diálogos com a Ciência»



É geralmente bom começarmos por definições assentes sobre os termos de que partimos. Seja assim o caso de hoje:

Religião (do latim religio – onis). Crença na existência de um poder superior, do qual o homem depende. […] Sistema estruturado de doutrinas, crenças, regras e práticas de uma determinada comunidade de pessoas que instituem um determinado tipo de relação com um poder superior, sobre-humano” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, vol. 2, p. 3175). “Ciência (do latim scientia). Conjunto dos conhecimentos exactos, universais e verificáveis, expressos por meio de leis, que o Homem tem sobre si próprio, sobre a natureza, a sociedade, o pensamento” (Ibidem, vol. 1, p. 813).

Sublinhem-se as palavras: da religião diz-se ser crença, da ciência diz-se ser conhecimento exacto, universal e verificável; da religião salienta-se a desproporção entre o sujeito e o objecto, entre o homem e o “poder superior” do qual depende; da ciência, a equivalência entre o homem que conhece e a humanidade que é conhecida, ou mesmo a superioridade em relação à natureza observada.

Podemos acrescentar que, dum nível para o outro, sai-se do opinável para o experimentável, diminuindo-se a margem da subjectividade ou do questionável. De facto assim parece ser. Mas diminui também a liberdade, por se entrar no campo da evidência.

Caiba aqui um breve percurso histórico. Hoje distinguimos ciência e religião; e acrescento: hoje felizmente distinguimos ciência e religião. Na verdade, seria impensável fazê-lo em épocas menos desenvolvidas – digamos já menos “evoluídas” - da humanidade, quando tudo era imediatamente sentido e ressentido, acontecido e sofrido.

Nessa altura – mesmo quando persista ainda hoje – tudo era sincreticamente assumido, quando a própria existência era tão insegura e sem recuo em relação às circunstâncias previstas e imprevistas. Ainda assim acontece ou pode de repente acontecer, mal estremeçam os esquemas habituais de previsão e controlo, ou quando estes não tenham começado sequer.

Costumo lembrar a este propósito o que se passou décadas atrás com um colega meu, universitário, num território do Pacífico. Decidiu ele passar algum tempo com uma tribo nativa, culturalmente “contemporânea” de milénios atrás. Estranhou os constantes problemas gastrointestinais de que sofria e morria aquela pequena população recôndita e, como europeu do século XX, procurou a causa observável do problema. Não tardou a descobri-la: a fonte donde vinha a água para a tribo era a mesma onde bebiam – e não só – os animais da selva envolvente. Deduzida a razão, entrou a técnica, conseguindo improvisar uma separação relativamente sólida da água para as pessoas e da água para os animais. Também não demoraram as consequências benéficas, diminuindo muito os distúrbios da saúde da tribo. Só que também não passou muito tempo até começar a sentir desconfiança e hostilidade à sua volta, por se ter atrevido a tocar e a alterar aquela “dádiva dos deuses”, como era considerada a fonte em causa, perturbando o esquema implícito da segurança da tribo. De tal modo que só lhe restou abandonar rapidamente o local, para que não perigasse drasticamente a sua própria segurança física…

Não nos julguemos tão afastados assim deste caso e mentalidade, tão atávicas se manifestam as zonas mais profundas da nossa (in)consciência e sensibilidade. Basta-nos ouvir ou folhear noticiários correntes para detectarmos situações semelhantes, mesmo na Europa e no nosso Portugal. Importante é verificar, ainda que rapidamente, como a pouco e pouco conseguimos distinguir campos e ensaiar métodos, para percebermos a realidade exterior e interior, sem confundir sectores nem galgar patamares de conhecimento.

Como importante será compreendermos como religião e ciência se tornam complementares e interactivas na melhor definição recíproca. Como geralmente acontece, o crescimento delas realiza-se como autêntica “crise de crescimento”: a afirmação da mentalidade científica exigiu a redefinição da esfera religiosa; e a persistência da religião, em sucessivas decantações, situou a ciência no seu campo específico, tanto em termos de método e objecto como em lúcida auto-limitação, para poder prosseguir com segurança e acerto.

Permiti-me um brevíssimo relance sobre o percurso da ciência ocidental, como melhor maneira de ilustrar o que vai dito sobre a complementaridade interactiva da religião e da ciência:

Com Aristóteles (séc. IV a. C.), acentua-se já a atenção à realidade observável, da natural à psíquica e social. Também à experiência. Sendo ele contemporâneo de Platão, para quem a realidade era outra e este mundo apenas sombra… Com os romanos depois, eminentemente práticos. a ciência continuou a ser grega: Galeno, Ptolomeu… Com os cristãos tentou-se uma síntese ou manteve-se uma tensão: “aproveitaram” a mística de Platão, mas a incarnação levou-os no sentido aristotélico.

Terminado o Império Romano do Ocidente, guardou-se o saber antigo em igrejas e mosteiros. Desde o século VII, foi também transmitido pelos árabes, que entretanto ocuparam a parte oriental do mesmo Império e o passaram à Europa, nomeadamente através da Península Ibérica (de Córdova a Toledo). Símbolo desta herança e transmissão é Gerberto de Aurillac (+ 1003), um beneditino francês estudante em Vich (Espanha fronteiriça dos árabes) e abade de Bobbio. Foi o papa do ano mil (Silvestre II), matemático e astrónomo.

No século XII e XIII desenvolvem-se as Universidades, geralmente na órbita da Igreja, a partir do trívio (gramática, retórica e dialética) e do quadrívio (aritmética, geometria, astronomia e música), presentes na faculdade das “artes” e propedêuticas da Medicina, das Leis e dos Cânones, bem como da Teologia. Pretendia-se o saber universal e integrado, degrau a degrau, como o tentaram Alberto Magno (+ 1280), “Doutor Universal”, atento a tudo, qual Aristóteles cristão, e o seu discípulo Tomás de Aquino (+ 1274), ou o nosso Pedro Hispano, papa João XXI em 1276-1277.

O século XV assistiu às grandes descobertas marítimas, que uniram continentes e revelaram a Terra num todo insuspeitado. Mas tais viagens não se fizeram sem grande atenção aos astros e tudo isto poria em causa a compreensão antiga do lugar do nosso planeta no Universo, bem como a leitura ingénua de antigos relatos, mesmo bíblicos, de incidência cosmológica.

Nicolau de Cusa (+ 1464), alemão e cardeal, desenvolveu cálculos astronómicos, em que o Sol e a Terra se moviam como os outros corpos celestes (fim do geocentrismo). Como adiantaria depois o polaco Nicolau Copérnico (+ 1543), cónego e astrónomo: a Terra em movimento e o heliocentrismo. São tentativas e debates internos de homens religiosos e dentro da Igreja, que alargavam conceitos, distinguiam campos e redefiniam a sua fé. Assim Galileu Galilei, advogando depois a astronomia de Copérnico - aliás não absolutamente comprovável na altura, antes contrariada pela do seu colega e coevo dinamarquês Tycho Brahe - e revendo a exegese bíblica. Ambas as coisas lhe valeram a reprovação do Santo Ofício romano em 1632. Escutemos a apreciação de João Paulo II, em 1992: “A maioria dos teólogos não percebia a distinção formal entre a Sagrada Escritura e a sua interpretação, o que a conduziu a trasladar indevidamente para o âmbito da doutrina da fé uma questão de facto pertencente à investigação científica”. Outros já a entendiam, mesmo nos meios romanos da altura, como o cardeal que diria: “a Escritura não nos ensina como é o céu, mas como havemos de ir para o Céu”.

Entretanto, cientistas jesuítas como Clávio e Ricci acertavam o tempo e unificavam o mapa terrestre. Em 1582, Clávio ajustou o ano civil ao solar, muito desgarrados que já estavam no calendário juliano. E Ricci fez em Nankin o “mapa dos 10 000 reinos”, em 1599. Aliás, sucederam-se os sacerdotes católicos no desenvolvimento da ciência moderna, como Gassendi, francês (+ 1655), astrónomo, estudando a aurora boreal em 1621 e também os satélites de Júpiter, esboçando até um “princípio de relatividade”, medindo a velocidade do som no ar, teorizando sobre os átomos… Ou Mariotte, igualmente francês (+ 1684), descobrindo como Boyle a relação entre o volume e a pressão dos gases, ou escrevendo a mais notável obra de fisiologia vegetal do século XVII sobre a seiva, a nutrição e o desenvolvimento das plantas.

Também não faltaram sacerdotes cientistas no século do Iluminismo, como o escolápio italiano Beccaria (+ 1781), da Universidade de Turim, que, segundo o seu coevo Priestley “superou amplamente tudo o que tinham feito os especialistas da electricidade, franceses e ingleses” e foi muito admirado por Franklin, que o fez traduzir em inglês. Incluindo, na aplicação taxinómica, o nosso jesuíta João Loureiro (+ 1791), que divulgou a flora da Cochinchina, como o seu confrade António Cordeiro a das ilhas açorianas. (Lembre-se a propósito que a aplicação dos sábios jesuítas no campo das ciências naturais se concretizaria entre nós, no princípio do século XX, com a revista Brotéria, 1ª série, a partir do colégio de S. Fiel (Beira Baixa), que Egas Monis frequentou em jovem e elogiaria mais tarde.) E foi em meados do século XVIII, que o padre oratoriano Verney escreveu o seu “verdadeiro método de estudar”, com a sistematização moderna dos saberes e dos processos respectivos.

Assim se caminhara, entre dificuldades de vária ordem, passando-se da historicidade humana, a pouco e pouco concebida, à temporalidade alargada da própria natureza. Quando as revoluções contemporâneas puseram drasticamente em causa os quadros sócio-políticos imemoriais, as descobertas científicas requereram igualmente um novo relacionamento do homem com o espaço e o tempo, ambos imensamente alargados.

Nos séculos XIX e XX não faltaram cientistas crentes, de Ampère (electricidade) a Marconi (rádio); nem escassearam sacerdotes cientistas, de Mendel (+ 1884), cujas leis da hereditariedade tanto complementaram a teoria evolucionista de Darwin, a George Lemaître, astrofísico e matemático belga que em 1927 avançou a hipótese do “Big Bang”, a explosão inicial do Universo, ou a Teilhard de Chardin (+ 1955), que na evolução do universo distinguiu o crescimento da consciência humana, em complexificação e liberdade crescentes, rumo a um ponto Ómega tão entrevisto como atractivo. Aliás, o século XX português, em termos científicos, quase começou com a consagração internacional do nosso físico Pe. Manuel Himalaia (+ 1933), Grande Prémio da Exposição Universal de S. Luís em 1904; e contou, na segunda metade, com a actividade pioneira do Pe. Luís Archer, ainda felizmente entre nós, no campo da biologia e da genética molecular.

Diremos, quase a concluir, que a relação entre religião e ciência não se pode considerar extrínseca, pois coexiste num único ser humano, que vive e sobrevive, sofre e reage, persiste e cria. Por isso mesmo, a consciência de si e o sentido que dá a existência pessoal e colectiva, se estão profundamente ligados às condições materiais e sociais coetâneas, excedem as circunstâncias por partirem de “antes” ou “de dentro” delas. Aí sondaremos o que as religiões nos lembram, sem substituir a materialidade em que a vida acontece. Mantendo este equilíbrio, nenhum revés nos fará desistir do futuro. Da parte da Igreja Católica, retomo as seguintes palavras:

O Magistério da Igreja está directamente interessado pela questão da evolução, pois ela se refere à concepção do homem […]. A consideração do método utilizado nas diversas ordens do saber permite harmonizar dois pontos de vista, que pareceriam inconciliáveis. As ciências da observação descrevem e medem, de modo cada vez mais preciso, as múltiplas manifestações da vida e inscrevem-nas na linha do tempo […]. Mas a experiência do saber metafísico, da consciência de si e da sua reflexividade, a da consciência moral, a da liberdade, ou ainda a experiência estética e religiosa, são da competência da análise e da reflexão filosóficas, ainda que a teologia esclareça o seu sentido último segundo os desígnios do Criador” (João Paulo II, 22 de Outubro de 1996).

Como se afirmasse, em chave bíblica, a radical distinção da criação em relação ao Criador, por iniciativa do próprio Deus, ecoando um sugestivo versículo (2 Mac 7, 28): “Suplico-te, meu filho, que contemples o céu e a terra. Reflecte bem: o que vês, Deus o criou do nada, assim como a todos os homens”. Distinção que nos situa, como criação, “fora” de Deus e certamente encarregados do futuro humano e cósmico até. Mas que, em sentido propriamente religioso, nos leva a sondar a intenção divina, que nos cria para a reciprocidade humano-divina, tão livre como responsável. O cristão verá na vida de Jesus de Nazaré a realização profética de tal reciprocidade e procurará, também neste ponto, respeitar “o que é de César e o que é de Deus”. Isto é, respeitar o mundo como mundo, na compreensão e progresso do seu dinamismo intrínseco, e não perder nunca o sentido das coisas, como partilha universal da vida recebida, respeitada e potenciada, quer em termos pessoais e inter-pessoais, quer na dimensão ecológica geral.

Termino com as estimulantes palavras de John F. Haught, teólogo e professor da Universidade de Georgetown, num livro dedicado à oportuníssima temática da relação entre cristianismo e evolucionismo:

“Depois de Darwin, a redenção é melhor entendida como São Paulo a entendeu: como nova criação. A nossa esperança é de uma renovação e realização de todo o cosmos, não apenas a salvação das nossas almas individuais. […] A perspectiva evolucionista da natureza sugere que, de algum modo, Deus quer que o mundo ‘se torne ele próprio’. À medida que o Amor divino Se entrega a Si mesmo à criação, a independência e a liberdade do mundo não diminuem, mas antes se consolidam. E quando os seres humanos surgem nesta história incrivelmente fascinante, a evolução passa a estar dotada de uma liberdade e de uma consciência sem precedentes. Mas esta liberdade traz consigo uma capacidade para o pecado. A fé em Deus, porém, implica a fé na redenção. O mal, o sofrimento e o pecado podem ser vencidos pela nova criação” (John F. Haught, Cristianismo e evolucionismo em 101 perguntas e respostas, Lisboa, Gradiva, 2009, p. 216-217).

Quem crê na Páscoa de Jesus, encontra nela a profecia inabalável duma Páscoa universal. E com essa fé se une inteiramente aos esforços de crentes e não crentes para alimentar a esperança da humanidade, respeitando tudo quanto a ciência vai descortinando e desenvolvendo das potencialidades intrínsecas do mundo.

D. Manuel Clemente, Bispo do Porto
(Intervenção no Ciclo de Conferências “Diálogos com a Ciência”, Reitoria da Universidade do Porto, 8 de Outubro de 2009)

Fonte: Agência Ecclesia

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