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O CRISTIANISMO NÃO É UM MORALISMO... A ÉTICA É CONSEQUÊNCIA DO SER

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O cristianismo não é um moralismo, não somos nós que temos de realizar aquilo que Deus espera do mundo, mas em primeiro lugar temos que entrar neste mistério ontológico: Deus entrega-se a si mesmo. O seu ser, o seu amar precede o nosso agir e, no contexto do seu Corpo, no âmbito do estar com Ele, identificados com Ele, enobrecidos com o seu Sangue, também nós podemos agir com Cristo.
A ética é consequência do ser: primeiro, o Senhor confere-nos um novo ser, esta é a grande dádiva; o ser precede o agir e a partir dele segue-se, depois, o agir, como uma realidade orgânica, porque o que somos, podemos sê-lo também na nossa actividade. E deste modo damos graças ao Senhor porque nos tirou do puro moralismo; não podemos obedecer a uma lei que está diante de nós, mas simplesmente temos que agir em conformidade com a nossa nova identidade. Por conseguinte, não é mais uma obediência, algo exterior, mas sim uma realização do dom do novo ser.
"Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei". Não existe amor maior do que este: "Dar a vida pelos próprios amigos". Que significa? Também aqui, não se trata de um moralismo. Poder-se-ia dizer: "Não é um novo mandamento; o mandamento de amar o próximo como a nós mesmos já existe no Antigo Testamento". Alguns afirmam: "Este amor deve ser ainda mais radicalizado; este amar o outro deve imitar Cristo, que se entregou por nós; deve ser um amar heróico, até ao dom de si mesmo". Porém, neste caso o cristianismo seria um moralismo heróico. É verdade que temos de chegar até a esta radicalidade do amor, que Cristo nos manifestou e concedeu, mas também aqui a verdadeira novidade não é aquilo que nós levamos a cabo, a verdadeira novidade é o que Ele realizou: o Senhor entregou-se a si mesmo, o Senhor conferiu-nos a verdadeira novidade de sermos seus membros no seu corpo, de sermos ramos da videira, que é Ele. Por conseguinte, a novidade é a dádiva, o dom grandioso, e é do dom, da novidade do dom que provém inclusive, como eu disse, o novo agir.
S. Tomás de Aquino di-lo de maneira muito específica, quando escreve: "A nova lei é a graça do Espírito Santo" (Summa theologiae, i-iiae, q. 106, a. 1). A nova lei não é outro mandamento, mais difícil do que os demais: a nova lei é um dom, a nova lei é a presença do Espírito Santo que nos foi concedido no Sacramento do Baptismo, na Crisma, e que nos é oferecido cada dia na Santíssima Eucaristia. Aqui, os Padres distinguiram entre "sacramentum" e "exemplum". "Sacramentum" é o dom do novo ser, e este dom torna-se também exemplo para o nosso agir, mas o "sacramentum" vem antes, e nós vivemos a partir do sacramento. Aqui vemos a centralidade do sacramento, que é centralidade da dádiva.
O Senhor diz: "Já não vos chamo servos, pois o servo não sabe o que faz o seu senhor. Chamei-vos amigos, porque tudo quanto ouvi do Pai vo-lo dei a conhecer a vós". Já não sois servos, que obedecem ao mandamento, mas amigos que conhecem, que estão unidos na mesma vontade, no mesmo amor. Portanto, a novidade é que Deus se fez conhecer, que Deus se manifestou, que Deus não é mais o Deus desconhecido, procurado mas não encontrado, ou apenas adivinhado à distância. Deus fez-se ver: vemos Deus no rosto de Cristo, Deus fez-se "conhecido", e deste modo tornou-nos amigos. Pensemos na história da humanidade, em todas as religiões arcaicas, as pessoas sabem que existe um Deus. Este é um conhecimento imerso no coração do homem, que Deus é um só, e os deuses não são "o" Deus. Mas este Deus permanece muito distante, parece que não se deixa conhecer, não se deixa amar, não é amigo, mas está distante. Por este motivo, as religiões ocupam-se pouco deste Deus, a vida concreta ocupa-se dos espíritos, das realidades concretas que encontramos todos os dias, e as quais temos que avaliar diariamente. Deus permanece distante.
Em seguida, vemos o grande movimento da filosofia: pensemos em Platão, Aristóteles, que começam a intuir como este Deus é o agathón, a própria bondade, é o eros que move o mundo, e todavia este permanece um pensamento humano, constitui uma ideia de Deus que se aproxima da verdade, mas é uma ideia nossa e Deus permanece o Deus escondido.
Há pouco tempo, escreveu-me um professor de Regensburg, um docente de física, que tinha lido com grande atraso o meu discurso na Universidade de Regensburg, para me dizer que não podia estar de acordo com a minha lógica, ou só podia parcialmente. Ele disse: "Sem dúvida, convence-me a ideia de que a estrutura racional do mundo exige uma razão criadora, a qual realizou esta racionalidade que não se explica por si mesma". Depois, continuava: "Mas se pode existir um demiurgo assim se exprime um demiurgo parece-me garantido a partir daquilo que o senhor diz, mas não me parece que exista um Deus amor, bom, justo e misericordioso. Posso ver que existe uma razão, que precede a racionalidade do cosmos, mas não o restante". E assim Deus permanece-lhe escondido. Trata-se de uma razão que precede as nossas razões, a nossa racionalidade, a racionalidade do ser, mas não existe um amor eterno, não há a grande misericórdia que nos permite viver.
E eis que, em Cristo, Deus se manifestou na sua verdade total, mostrou que é razão e amor, que a razão eterna é amor e assim cria. Infelizmente, também hoje muitos vivem distantes de Cristo, não conhecem o seu rosto e deste modo a eterna tentação do dualismo, que se esconde também na missiva deste professor, renova-se sempre, ou seja, que talvez não haja unicamente um princípio bom, mas também um princípio perverso, um princípio do mal; que o mundo está dividido, e são duas realidades igualmente fortes: e que o Deus bom é apenas uma parte da realidade. Também na teologia, compreendida a católica, difunde-se actualmente esta tese: Deus não seria omnipotente. Deste modo procura-se uma apologia de Deus, que assim não seria responsável pelo mal que encontramos amplamente no mundo. Mas que pobre apologia! Um Deus não omnipotente! O mal não está nas suas mãos! E como é que poderíamos confiar-nos a este Deus? Como poderíamos ter a certeza do seu amor, se este amor termina onde começa o poder do mal?
Mas Deus já não é desconhecido: no rosto de Cristo Crucificado vemos Deus, e vemos a verdadeira omnipotência, não o mito da omnipotência. Para nós homens, a potência, o poder é sempre idêntico à capacidade de destruir, de cometer o mal. Todavia, o verdadeiro conceito de omnipotência que se manifesta em Cristo é precisamente o contrário: nele, a verdadeira omnipotência consiste em amar até ao ponto em que Deus pode sofrer: aqui aparece a sua verdadeira omnipotência, que pode chegar ao ponto de um amor que sofre por nós. E desde modo vemos que Ele é o Deus verdadeiro, e o Deus verdadeiro que é amor, poder: o poder do amor. E nós podemos confiar-nos ao seu amor todo-poderoso e viver nele, com este amor omnipotente.
Penso que temos de meditar novamente sobre esta realidade, dar graças a Deus porque Ele se manifestou, porque lhe conhecemos o rosto, face à face; não é mais como Moisés, que só podia ver o Senhor de costas. Também esta é uma bonita ideia, da qual São Gregório de Nissa diz: "Ver só as costas quer dizer que temos de caminhar sempre atrás de Cristo". Mas ao mesmo tempo, através de Cristo, Deus mostrou a sua face, o seu rosto. O véu do templo rasgou-se, abriu-se, o mistério de Deus é visível. O primeiro mandamento que exclui imagens de Deus, porque elas só poderiam diminuir a realidade, mudou, renovou-se, adquiriu uma outra forma. Agora, no homem Cristo, podemos ver o rosto de Deus; podemos ver o ícone de Cristo e assim ver quem é Deus.
Penso que quem compreendeu isto, quem se deixou sensibilizar por este mistério, que Deus se revelou, rasgou o véu do templo e mostrou o seu rosto, encontra uma fonte de alegria permanente. Só podemos dizer: "Obrigado! Sim, agora sabemos quem és Tu, quem é Deus e como Lhe devemos responder". E penso que esta alegria de conhecer Deus que se mostrou, que se manifestou até ao íntimo do seu ser, implica inclusive a alegria do comunicar: quem compreendeu isto, vive sensibilizado por esta realidade, deve fazer como fizeram os primeiros discípulos, que vão ter com os seus amigos e irmãos, dizendo: "Encontrámos aquele de quem falam os Profetas. Agora, Ele está presente". A missionariedade não é algo exteriormente acrescentado à fé, mas constitui o dinamismo da própria fé. Quem viu, quem encontrou Jesus, deve ir ter com os próprios amigos e dizer-lhes: "Nós encontrámo-lo, é Jesus, o Crucificado por nós".

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PAPA BENTO XVI
Sexta-feira, 12 de Fevereiro de 2010
Visita ao Pontifício Seminário Romano maior, na festa de Nossa Senhora da Confiança

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