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A fragmentação do saber destrói a unidade interior do homem

(...)
4. Encontramo-nos hoje em Torun, na localidade chamada «cidade de Copérnico», na Universidade que lhe é intitulada. A descoberta feita por Copérnico e a sua importância no contexto da história da ciência recorda-nos a contraposição sempre viva, existente entre a razão e a fé. Embora para Copérnico mesmo a descoberta se tenha tornado fonte de uma admiração ainda maior pelo Criador do mundo e pelo poder da razão humana, para muitas pessoas esta constituiu um motivo para contrapor a razão à fé. Qual é a verdade? A razão e a fé são duas realidades que devem porventura excluir-se reciprocamente? Na divergência entre a razão e a fé exprime-se um dos maiores dramas do homem. Este tem muitas causas. Especialmente a começar pelo tempo do Iluminismo, o exagerado e unilateral racionalismo levou à radicalização das posições nos campos das ciências naturais e da filosofia. A separação, que assim surgiu entre fé e razão, provocou danos irreparáveis não só à religião, mas também à cultura. No foco de vigorosas polémicas esquecia-se com frequência o facto de que a fé «não teme a razão, mas solicita-a e confia nela. Assim como a graça supõe a natureza e a leva à perfeição, assim também a fé supõe e aperfeiçoa a razão» (Fides et ratio, 43). A fé e a razão constituem como que «as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade» (Ibid., preâmbulo). Hoje é preciso actuar a favor da reconciliação entre fé e razão: Na Encíclica Fides et ratio, escrevi: «A fé, privada da razão, pôs em maior evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal. É ilusório pensar que, tendo à frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não tiver à frente uma fé adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e a radicalidade do ser (...) Ao desassombro (parresia) da fé deve corresponder a audácia da razão» (n. 48). Em última análise, este é o problema da unidade interior do homem, sempre ameaçada pela divisão e pela fragmentação do seu saber, ao qual falta o princípio unificador. Neste campo, hoje a investigação filosófica tem uma tarefa especial. 5. Aos homens da ciência e da cultura foi confiada uma particular responsabilidade em relação à verdade - tender para ela, defendê-la e viver em conformidade com esta. Conhecemos muito bem as dificuldades ligadas à busca humana da verdade, entre as quais hoje prevalecem o cepticismo, o agnosticismo, o relativismo e o niilismo. Procura-se com frequência persuadir o homem de que terminou definitivamente o tempo da certeza do conhecimento da verdade e de que somos condenados de maneira irrevogável a uma total ausência de sentido, ao carácter provisório do saber, a uma instabilidade e relatividade permanentes. Nesta situação, parece imperiosa a necessidade de confirmar a fundamental confiança na razão humana e a sua capacidade de conhecer a verdade - inclusive a verdade absoluta e definitiva. O homem é capaz de elaborar para si mesmo uma uniforme e orgânica concepção do conhecimento. A fragmentação do saber destrói a unidade interior do homem. O homem aspira à plenitude do saber, porque é um ser que por natureza busca a verdade (cf. Fides et ratio, 28), e não pode viver sem esta. É necessário que a ciência contemporânea, e de maneira especial a actual filosofia, reencontrem - cada qual no próprio contexto - aquela dimensão sapiencial que consiste na busca do sentido definitivo e global da existência humana. A busca da verdade realiza-se não só mediante um esforço individual na biblioteca ou no laboratório, mas possui também uma dimensão comunitária. «De facto, a perfeição do homem não se reduz apenas à aquisição do conhecimento abstracto da verdade, mas consiste também numa relação viva de doação e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que leva à doação, o homem encontra plena certeza e segurança. Ao mesmo tempo, porém, o conhecimento por crença, que se fundamenta na confiança interpessoal, tem a ver também com a verdade: de facto, acreditando, o homem confia na verdade que o outro lhe manifesta» (Fides et ratio, 32). Sem dúvida, esta é uma experiência preciosa para cada um de vós. Alcança-se a verdade também graças ao próximo, no diálogo com os outros e pelos outros. A busca da verdade e a partilha desta com os demais é um importante serviço social, para o qual são chamados de modo especial os homens da ciência. (...)
O homem teme cada vez mais os resultados da própria razão e liberdade. Sente-se em perigo. Por isso, é mais importante e actual do que nunca recordar a verdade essencial que o mundo é dom de Deus Criador, que é Amor, e o homem-criatura é chamado a um prudente e responsável domínio sobre o mundo da natureza, e não à sua irreflectida destruição. Além disso, é necessário lembrar que a razão é um dom de Deus, para S. Tomás a razão é o maior dom de Deus, sinal da semelhança a Deus, que cada homem traz em si. Por isso, é muito importante a constante recordação de que a autêntica liberdade das investigações científicas não pode prescindir do critério da verdade e do bem. Hoje a solicitude pela consciência moral e pelo sentido de responsabilidade da pessoa por parte dos homens da ciência passa ao nível dos imperativos fundamentais. É precisamente neste plano que se decide a sorte da ciência contemporânea, ou seja, num certo sentido, o destino de toda a humanidade. Enfim, é preciso recordar a necessidade de uma incessante gratidão por aquele dom que o homem é para o seu semelhante - aquele dom graças ao qual, com o qual e pelo qual ele se insere na grande aventura da busca da verdade. (...)
JOÃO PAULO II
Torun, 7 de Junho de 1999
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