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SE QUISERES CULTIVAR A PAZ, PRESERVA A CRIAÇÃO

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE

BENTO XVI
PARA A CELEBRAÇÃO DO
DIA MUNDIAL DA PAZ


1 DE JANEIRO DE 2010


SE QUISERES CULTIVAR A PAZ, PRESERVA A CRIAÇÃO


1. Por ocasião do início do Ano Novo, desejo expressar os mais ardentes votos de paz a todas as comunidades cristãs, aos responsáveis das nações, aos homens e mulheres de boa vontade do mundo inteiro. Para este XLIII Dia Mundial da Paz, escolhi o tema: Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação. O respeito pela criação reveste-se de grande importância, designadamente porque «a criação é o princípio e o fundamento de todas as obras de Deus»[1] e a sua salvaguarda torna-se hoje essencial para a convivência pacífica da humanidade. Com efeito, se são numerosos os perigos que ameaçam a paz e o autêntico desenvolvimento humano integral, devido à desumanidade do homem para com o seu semelhante – guerras, conflitos internacionais e regionais, actos terroristas e violações dos direitos humanos –, não são menos preocupantes os perigos que derivam do desleixo, se não mesmo do abuso, em relação à terra e aos bens naturais que Deus nos concedeu. Por isso, é indispensável que a humanidade renove e reforce «aquela aliança entre ser humano e ambiente que deve ser espelho do amor criador de Deus, de Quem provimos e para Quem estamos a caminho».[2]

2. Na encíclica Caritas in veritate, pus em realce que o desenvolvimento humano integral está intimamente ligado com os deveres que nascem da relação do homem com o ambiente natural, considerado como uma dádiva de Deus para todos, cuja utilização comporta uma responsabilidade comum para com a humanidade inteira, especialmente os pobres e as gerações futuras. Assinalei também que corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade, quando a natureza e sobretudo o ser humano são considerados simplesmente como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo.[3] Pelo contrário, conceber a criação como dádiva de Deus à humanidade ajuda-nos a compreender a vocação e o valor do homem; na realidade, cheios de admiração, podemos proclamar com o salmista: «Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, a lua e as estrelas que lá colocastes, que é o homem para que Vos lembreis dele, o filho do homem para dele Vos ocupardes?» (Sl 8, 4-5). Contemplar a beleza da criação é um estímulo para reconhecer o amor do Criador; aquele Amor que «move o sol e as outras estrelas».[4]

3. Há vinte anos, ao dedicar a Mensagem do Dia Mundial da Paz ao tema Paz com Deus criador, paz com toda a criação, o Papa João Paulo II chamava a atenção para a relação que nós, enquanto criaturas de Deus, temos com o universo que nos circunda. «Observa-se nos nossos dias – escrevia ele – uma consciência crescente de que a paz mundial está ameaçada (…) também pela falta do respeito devido à natureza». E acrescentava que esta consciência ecológica «não deve ser reprimida mas antes favorecida, de maneira que se desenvolva e vá amadurecendo até encontrar expressão adequada em programas e iniciativas concretas».[5] Já outros meus predecessores se referiram à relação existente entre o homem e o ambiente; por exemplo, em 1971, por ocasião do octogésimo aniversário da encíclica Rerum novarum de Leão XIII, Paulo VI houve por bem sublinhar que, «por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o homem] começa a correr o risco de a destruir e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação». E acrescentou que, deste modo, «não só o ambiente material se torna uma ameaça permanente – poluições e lixo, novas doenças, poder destruidor absoluto – mas é o próprio contexto humano que o homem não consegue dominar, criando assim para o dia de amanhã um ambiente global que se lhe poderá tornar insuportável. Problema social de grande envergadura, este, que diz respeito à inteira família humana».[6]

4. Embora evitando de intervir sobre soluções técnicas específicas, a Igreja, «perita em humanidade», tem a peito chamar vigorosamente a atenção para a relação entre o Criador, o ser humano e a criação. Em 1990, João Paulo II falava de «crise ecológica» e, realçando o carácter prevalecentemente ético de que a mesma se revestia, indicava «a urgente necessidade moral de uma nova solidariedade».[7] Hoje, com o proliferar de manifestações duma crise que seria irresponsável não tomar em séria consideração, tal apelo aparece ainda mais premente. Pode-se porventura ficar indiferente perante as problemáticas que derivam de fenómenos como as alterações climáticas, a desertificação, o deterioramento e a perda de produtividade de vastas áreas agrícolas, a poluição dos rios e dos lençóis de água, a perda da biodiversidade, o aumento de calamidades naturais, o desflorestamento das áreas equatoriais e tropicais? Como descurar o fenómeno crescente dos chamados «prófugos ambientais», ou seja, pessoas que, por causa da degradação do ambiente onde vivem, se vêem obrigadas a abandoná-lo – deixando lá muitas vezes também os seus bens – tendo de enfrentar os perigos e as incógnitas de uma deslocação forçada? Com não reagir perante os conflitos, já em acto ou potenciais, relacionados com o acesso aos recursos naturais? Trata-se de um conjunto de questões que têm um impacto profundo no exercício dos direitos humanos, como, por exemplo, o direito à vida, à alimentação, à saúde, ao desenvolvimento.

5. Entretanto tenha-se na devida conta que não se pode avaliar a crise ecológica prescindindo das questões relacionadas com ela, nomeadamente o próprio conceito de desenvolvimento e a visão do homem e das suas relações com os seus semelhantes e com a criação. Por isso, é decisão sensata realizar uma revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento e também reflectir sobre o sentido da economia e dos seus objectivos, para corrigir as suas disfunções e deturpações. Exige-o o estado de saúde ecológica da terra; reclama-o também e sobretudo a crise cultural e moral do homem, cujos sintomas há muito tempo que se manifestam por toda a parte.[8] A humanidade tem necessidade de uma profunda renovação cultural; precisa de redescobrir aqueles valores que constituem o alicerce firme sobre o qual se pode construir um futuro melhor para todos. As situações de crise que está atravessando, de carácter económico, alimentar, ambiental ou social, no fundo são também crises morais e estão todas interligadas. Elas obrigam a projectar de novo a estrada comum dos homens. Impõem, de maneira particular, um modo de viver marcado pela sobriedade e solidariedade, com novas regras e formas de compromisso, apostando com confiança e coragem nas experiências positivas realizadas e rejeitando decididamente as negativas. É o único modo de fazer com que a crise actual se torne uma ocasião para discernimento e nova projectação.

6. Porventura não é verdade que, na origem daquela que em sentido cósmico chamamos «natureza», há «um desígnio de amor e de verdade»? O mundo «não é fruto duma qualquer necessidade, dum destino cego ou do acaso, (…) procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas participantes do seu Ser, da sua sabedoria e da sua bondade».[9] Nas suas páginas iniciais, o livro do Génesis introduz-nos no projecto sapiente do cosmos, fruto do pensamento de Deus, que, no vértice, colocou o homem e a mulher, criados à imagem e semelhança do Criador, para «encher e dominar a terra» como «administradores» em nome do próprio Deus (cf. Gn 1, 28). A harmonia descrita na Sagrada Escritura entre o Criador, a humanidade e a criação foi quebrada pelo pecado de Adão e Eva, do homem e da mulher, que pretenderam ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-se como suas criaturas. Em consequência, ficou deturpada também a tarefa de «dominar» a terra, de a «cultivar e guardar» e gerou-se um conflito entre eles e o resto da criação (cf. Gn 3, 17-19). O ser humano deixou-se dominar pelo egoísmo, perdendo o sentido do mandato de Deus, e, no relacionamento com a criação, comportou-se como explorador pretendendo exercer um domínio absoluto sobre ela. Mas o verdadeiro significado do mandamento primordial de Deus, bem evidenciado no livro do Génesis, não consistia numa simples concessão de autoridade, mas antes num apelo à responsabilidade. Aliás, a sabedoria dos antigos reconhecia que a natureza está à nossa disposição, mas não como «um monte de lixo espalhado ao acaso»,[10] enquanto a Revelação bíblica nos fez compreender que a natureza é dom do Criador, o Qual lhe traçou os ordenamentos intrínsecos a fim de que o homem pudesse deduzir deles as devidas orientações para a «cultivar e guardar» (cf. Gn 2, 15).[11] Tudo o que existe pertence a Deus, que o confiou aos homens, mas não à sua arbitrária disposição. E quando o homem, em vez de desempenhar a sua função de colaborador de Deus, se coloca no lugar de Deus, acaba por provocar a rebelião da natureza, «mais tiranizada que governada por ele».[12] O homem tem, portanto, o dever de exercer um governo responsável da criação, preservando-a e cultivando-a.[13]

7. Infelizmente temos de constatar que um grande número de pessoas, em vários países e regiões da terra, experimenta dificuldades cada vez maiores, porque muitos se descuidam ou se recusam a exercer sobre o ambiente um governo responsável. O Concílio Ecuménico Vaticano II lembrou que «Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos».[14] Por isso, a herança da criação pertence à humanidade inteira. Entretanto o ritmo actual de exploração põe seriamente em perigo a disponibilidade de alguns recursos naturais não só para a geração actual, mas sobretudo para as gerações futuras.[15] Ora não é difícil constatar como a degradação ambiental é muitas vezes o resultado da falta de projectos políticos clarividentes ou da persecução de míopes interesses económicos, que se transformam, infelizmente, numa séria ameaça para a criação. Para contrastar tal fenómeno, na certeza de que «cada decisão económica tem consequências de carácter moral»,[16] é necessário também que a actividade económica seja mais respeitadora do ambiente. Quando se lança mão dos recursos naturais, é preciso preocupar-se com a sua preservação prevendo também os seus custos em termos ambientais e sociais, que se devem contabilizar como uma parcela essencial da actividade económica. Compete à comunidade internacional e aos governos nacionais dar os justos sinais para contrastar de modo eficaz, no uso do ambiente, as modalidades que resultem danosas para o mesmo. Para proteger o ambiente e tutelar os recursos e o clima é preciso, por um lado, agir no respeito de normas bem definidas mesmo do ponto de vista jurídico e económico e, por outro, ter em conta a solidariedade devida a quantos habitam nas regiões mais pobres da terra e às gerações futuras.

8. Na realidade, é urgente a obtenção de uma leal solidariedade entre as gerações. Os custos resultantes do uso dos recursos ambientais comuns não podem ficar a cargo das gerações futuras. «Herdeiros das gerações passadas e beneficiários do trabalho dos nossos contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos desinteressar-nos dos que virão depois de nós aumentar o círculo da família humana. A solidariedade universal é para nós não só um facto e um benefício, mas também um dever. Trata-se de uma responsabilidade que as gerações presentes têm em relação às futuras, uma responsabilidade que pertence também a cada um dos Estados e à comunidade internacional».[17] O uso dos recursos naturais deverá verificar-se em condições tais que as vantagens imediatas não comportem consequências negativas para os seres vivos, humanos e não humanos, presentes e vindouros; que a tutela da propriedade privada não dificulte o destino universal dos bens;[18] que a intervenção do homem não comprometa a fecundidade da terra para benefício do dia de hoje e do amanhã. Para além de uma leal solidariedade entre as gerações, há que reafirmar a urgente necessidade moral de uma renovada solidariedade entre os indivíduos da mesma geração, especialmente nas relações entre os países em vias de desenvolvimento e os países altamente industrializados: «A comunidade internacional tem o imperioso dever de encontrar as vias institucionais para regular a exploração dos recursos não renováveis, com a participação também dos países pobres, de modo a planificar em conjunto o futuro».[19] A crise ecológica manifesta a urgência de uma solidariedade que se projecte no espaço e no tempo. Com efeito, é importante reconhecer, entre as causas da crise ecológica actual, a responsabilidade histórica dos países industrializados. Contudo os países menos desenvolvidos e, de modo particular, os países emergentes não estão exonerados da sua própria responsabilidade para com a criação, porque o dever de adoptar gradualmente medidas e políticas ambientais eficazes pertence a todos. Isto poder-se-ia realizar mais facilmente se houvesse cálculos menos interesseiros na assistência, na transferência dos conhecimentos e tecnologias menos poluidoras.

9. Um dos nós principais a enfrentar pela comunidade internacional é, sem dúvida, o dos recursos energéticos, delineando estratégias compartilhadas e sustentáveis para satisfazer as necessidades de energia da geração actual e das gerações futuras. Para isso, é preciso que as sociedades tecnologicamente avançadas estejam dispostas a favorecer comportamentos caracterizados pela sobriedade, diminuindo as próprias necessidades de energia e melhorando as condições da sua utilização. Ao mesmo tempo é preciso promover a pesquisa e a aplicação de energias de menor impacto ambiental e a «redistribuição mundial dos recursos energéticos, de modo que os próprios países desprovidos possam ter acesso aos mesmos».[20] Deste modo, a crise ecológica oferece uma oportunidade histórica para elaborar uma resposta colectiva tendente a converter o modelo de desenvolvimento global segundo uma direcção mais respeitadora da criação e de um desenvolvimento humano integral, inspirado nos valores próprios da caridade na verdade. Faço votos, portanto, de que se adopte um modelo de desenvolvimento fundado na centralidade do ser humano, na promoção e partilha do bem comum, na responsabilidade, na consciência da necessidade de mudar os estilos de vida e na prudência, virtude que indica as acções que se devem realizar hoje na previsão do que poderá suceder amanhã.[21]

10. A fim de guiar a humanidade para uma gestão globalmente sustentável do ambiente e dos recursos da terra, o homem é chamado a concentrar a sua inteligência no campo da pesquisa científica e tecnológica e na aplicação das descobertas que daí derivam. A «nova solidariedade», que João Paulo II propôs na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990,[22] e a «solidariedade global», a que eu mesmo fiz apelo na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2009,[23] apresentam-se como atitudes essenciais para orientar o compromisso de tutela da criação através de um sistema de gestão dos recursos da terra melhor coordenado a nível internacional, sobretudo no momento em que se vê aparecer, de forma cada vez mais evidente, a forte relação que existe entre a luta contra a degradação ambiental e a promoção do desenvolvimento humano integral. Trata-se de uma dinâmica imprescindível, já que «o desenvolvimento integral do homem não pode realizar-se sem o desenvolvimento solidário da humanidade».[24] Muitas são hoje as oportunidades científicas e os potenciais percursos inovadores, mediante os quais é possível fornecer soluções satisfatórias e respeitadoras da relação entre o homem e o ambiente. Por exemplo, é preciso encorajar as pesquisas que visam identificar as modalidades mais eficazes para explorar a grande potencialidade da energia solar. A mesma atenção se deve prestar à questão, hoje mundial, da água e ao sistema hidrogeológico global, cujo ciclo se reveste de primária importância para a vida na terra, mas está fortemente ameaçado na sua estabilidade pelas alterações climáticas. De igual modo deve-se procurar apropriadas estratégias de desenvolvimento rural centradas nos pequenos cultivadores e nas suas famílias, sendo necessário também elaborar políticas idóneas para a gestão das florestas, o tratamento do lixo, a valorização das sinergias existentes no contraste às alterações climáticas e na luta contra a pobreza. São precisas políticas nacionais ambiciosas, completadas pelo necessário empenho internacional que há-de trazer importantes benefícios sobretudo a médio e a longo prazo. Enfim, é necessário sair da lógica de mero consumo para promover formas de produção agrícola e industrial que respeitem a ordem da criação e satisfaçam as necessidades primárias de todos. A questão ecológica não deve ser enfrentada apenas por causa das pavorosas perspectivas que a degradação ambiental esboça no horizonte; o motivo principal há-de ser a busca duma autêntica solidariedade de dimensão mundial, inspirada pelos valores da caridade, da justiça e do bem comum. Por outro lado, como já tive ocasião de recordar, a técnica «nunca é simplesmente técnica; mas manifesta o homem e as suas aspirações ao desenvolvimento, exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual superação de certos condicionamentos materiais. Assim, a técnica insere-se no mandato de “cultivar e guardar a terra” (cf. Gn 2, 15) que Deus confiou ao homem, e há-de ser orientada para reforçar aquela aliança entre ser humano e ambiente em que se deve reflectir o amor criador de Deus».[25]

11. É cada vez mais claro que o tema da degradação ambiental põe em questão os comportamentos de cada um de nós, os estilos de vida e os modelos de consumo e de produção hoje dominantes, muitas vezes insustentáveis do ponto de vista social, ambiental e até económico. Torna-se indispensável uma real mudança de mentalidade que induza a todos a adoptarem novos estilos de vida, «nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento».[26] Deve-se educar cada vez mais para se construir a paz a partir de opções clarividentes a nível pessoal, familiar, comunitário e político. Todos somos responsáveis pela protecção e cuidado da criação. Tal responsabilidade não conhece fronteiras. Segundo o princípio de subsidiariedade, é importante que cada um, no nível que lhe corresponde, se comprometa a trabalhar para que deixem de prevalecer os interesses particulares. Um papel de sensibilização e formação compete de modo particular aos vários sujeitos da sociedade civil e às organizações não-governamentais, empenhados com determinação e generosidade na difusão de uma responsabilidade ecológica, que deveria aparecer cada vez mais ancorada ao respeito pela «ecologia humana». Além disso, é preciso lembrar a responsabilidade dos meios de comunicação social neste âmbito, propondo modelos positivos que sirvam de inspiração. É que ocu-par-se do ambiente requer uma visão larga e global do mundo; um esforço comum e responsável a fim de passar de uma lógica centrada sobre o interesse egoísta da nação para uma visão que sempre abrace as necessidades de todos os povos. Não podemos permanecer indiferentes àquilo que sucede ao nosso redor, porque a deterioração de uma parte qualquer do mundo recairia sobre todos. As relações entre pessoas, grupos sociais e Estados, bem como as relações entre homem e ambiente são chamadas a assumir o estilo do respeito e da «caridade na verdade». Neste contexto alargado, é altamente desejável que encontrem eficaz correspondência os esforços da comunidade internacional que visam obter um progressivo desarmamento e um mundo sem armas nucleares, cuja mera presença ameaça a vida da terra e o processo de desenvolvimento integral da humanidade actual e futura.

12. A Igreja tem a sua parte de responsabilidade pela criação e sente que a deve exercer também em âmbito público, para defender a terra, a água e o ar, dádivas feitas por Deus Criador a todos, e antes de tudo para proteger o homem contra o perigo da destruição de si mesmo. Com efeito, a degradação da natureza está intimamente ligada à cultura que molda a convivência humana, pelo que, «quando a “ecologia humana”é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental».[27] Não se pode pedir aos jovens que respeitem o ambiente, se não são ajudados, em família e na sociedade, a respeitar-se a si mesmos: o livro da natureza é único, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a da ética pessoal, familiar e social.[28] Os deveres para com o ambiente derivam dos deveres para com a pessoa considerada em si mesma e no seu relacionamento com os outros. Por isso, de bom grado encorajo a educação para uma responsabilidade ecológica, que, como indiquei na encíclica Caritas in veritate, salvaguarde uma autêntica «ecologia humana» e consequentemente afirme, com renovada convicção, a inviolabilidade da vida humana em todas as suas fases e condições, a dignidade da pessoa e a missão insubstituível da família, onde se educa para o amor ao próximo e o respeito da natureza.[29] É preciso preservar o património humano da sociedade. Este património de valores tem a sua origem e está inscrito na lei moral natural, que é fundamento do respeito da pessoa humana e da criação.

13. Por fim não se deve esquecer o facto, altamente significativo, de que muitos encontram tranquilidade e paz, sentem-se renovados e revigorados quando entram em contacto directo com a beleza e a harmonia da natureza. Existe aqui uma espécie de reciprocidade: quando cuidamos da criação, constatamos que Deus, através da criação, cuida de nós. Por outro lado, uma visão correcta da relação do homem com o ambiente impede de absolutizar a natureza ou de a considerar mais importante do que a pessoa. Se o magistério da Igreja exprime perplexidades acerca de uma concepção do ambiente inspirada no ecocentrismo e no biocentrismo, fá-lo porque tal concepção elimina a diferença ontológica e axiológica entre a pessoa humana e os outros seres vivos. Deste modo, chega-se realmente a eliminar a identidade e a função superior do homem, favorecendo uma visão igualitarista da «dignidade» de todos os seres vivos. Assim se dá entrada a um novo panteísmo com acentos neopagãos que fazem derivar apenas da natureza, entendida em sentido puramente naturalista, a salvação para o homem. Ao contrário, a Igreja convida a colocar a questão de modo equilibrado, no respeito da «gramática» que o Criador inscreveu na sua obra, confiando ao homem o papel de guardião e administrador responsável da criação, papel de que certamente não deve abusar mas também não pode abdicar. Com efeito, a posição contrária, que considera a técnica e o poder humano como absolutos, acaba por ser um grave atentado não só à natureza, mas também à própria dignidade humana.[30]

14. Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação. A busca da paz por parte de todos os homens de boa vontade será, sem dúvida alguma, facilitada pelo reconhecimento comum da relação indivisível que existe entre Deus, os seres humanos e a criação inteira. Os cristãos, iluminados pela Revelação divina e seguindo a Tradição da Igreja, prestam a sua própria contribuição. Consideram o cosmos e as suas maravilhas à luz da obra criadora do Pai e redentora de Cristo, que, pela sua morte e ressurreição, reconciliou com Deus «todas as criaturas, na terra e nos céus» (Cl 1, 20). Cristo crucificado e ressuscitado concedeu à humanidade o dom do seu Espírito santificador, que guia o caminho da história à espera daquele dia em que, com o regresso glorioso do Senhor, serão inaugurados «novos céus e uma nova terra» (2 Pd 3, 13), onde habitarão a justiça e a paz para sempre. Assim, proteger o ambiente natural para construir um mundo de paz é dever de toda a pessoa. Trata-se de um desafio urgente que se há-de enfrentar com renovado e concorde empenho; é uma oportunidade providencial para entregar às novas gerações a perspectiva de um futuro melhor para todos. Disto mesmo estejam cientes os responsáveis das nações e quantos, nos diversos níveis, têm a peito a sorte da humanidade: a salvaguarda da criação e a realização da paz são realidades intimamente ligadas entre si. Por isso, convido todos os crentes a elevarem a Deus, Criador omnipotente e Pai misericordioso, a sua oração fervorosa, para que no coração de cada homem e de cada mulher ressoe, seja acolhido e vivido o premente apelo: Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação.

Vaticano, 8 de Dezembro de 2009.

BENEDICTUS PP. XVI

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[1] Catecismo da Igreja Católica, 198.

[2] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro de 2008), 7.

[3] Cf. n. 48.

[4] Dante Alighieri, Divina Comédia: O Paraíso, XXXIII, 145.

[5] Mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro de 1990), 1.

[6] Carta ap. Octogesima adveniens, 21.

[7] Mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro de 1990), 10.

[8] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 32.

[9] Catecismo da Igreja Católica, 295.

[10] Heráclito de Éfeso(± 535-475 a.C.), Fragmento 22B124, in H. Diels-W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (Weidmann, Berlim 19526).

[11] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 48.

[12] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 37.

[13] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 50.

[14] Const. past. Gaudium et spes, 69.

[15] Cf. João Paulo II, Carta enc.Sollicitudo rei socialis, 34.

[16] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 37.

[17] Pont. Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 467;cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio, 17.

[18] Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 30-31.43.

[19] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 49.

[20] Ibid., 49.

[21] Cf. São Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 49, 5.

[22] Cf. n. 9.

[23] Cf. n. 8.

[24] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio, 43.

[25] Carta enc. Caritas in veritate, 69.

[26] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 36.

[27] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 51.

[28] Cf. ibid., 15.51.

[29] Cf. ibid., 28.51.61; João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 38.39.

[30] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 70.


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PAPA BENTO XVIAUDIÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 2 de Dezembro de 2009

Guilherme de Saint-Thierry

Amados irmãos e irmãs!
Numa catequese precedente apresentei a figura de Bernardo de Claraval, o "Doutor da doçura", grande protagonista do século XII. O seu biógrafo amigo e apreciador foi Guilherme de Saint-Thierry, sobre o qual me detenho na reflexão desta manhã.

Guilherme nasceu em Liège entre 1075 e 1080. De família nobre, dotado de uma inteligência viva e de um amor inato pelo estudo, frequentou escolas famosas da época, como as da sua cidade natal e de Reims, na França. Entrou em contacto pessoal também com Abelardo, o mestre que aplicava a filosofia à teologia de modo tão original que suscitou muitas perplexidades e oposições. Também Guilherme expressou as suas dúvidas, solicitando o seu amigo Bernardo a tomar uma posição em relação a Abelardo. Respondendo àquele misterioso e irresistível apelo de Deus, que é a vocação à vida consagrada, Guilherme entrou no mosteiro beneditino de Saint-Nicaise de Reims em 1113, e alguns anos mais tarde tornou-se abade do mosteiro de Saint-Thierry, na diocese de Reims. Naquele período era muito difundida a exigência de purificar e renovar a vida monástica, para a tornar autenticamente evangélica. Guilherme trabalhou neste sentido no interior do próprio mosteiro, e em geral na Ordem beneditina. Contudo, encontrou muitas resistências face às suas tentativas de reforma, e assim, não obstante o parecer contrário do amigo Bernardo, em 1135 deixou a abadia beneditina, abandonou o hábito escuro e vestiu o branco, para se unir aos cistercienses de Signy. A partir daquele momento até à morte, no ano de 1148, dedicou-se à contemplação orante dos mistérios de Deus, desde sempre objecto dos seus mais profundos desejos, e à composição de escritos de literatura espiritual, importantes na história da teologia monástica.

Uma das suas primeiras obras intitula-se De natura et dignitate amoris (A natureza e a dignidade do amor). Nela está expressa uma das ideias fundamentais de Guilherme, válida também para nós. A energia principal que move o ânimo humano diz ele é o amor. A natureza humana, na sua essência mais profunda, consiste em amar. Enfim, a cada ser humano é confiada uma só tarefa: aprender a querer bem, a amar, sincera, autêntica e gratuitamente. Mas esta tarefa é desempenhada só na escola de Deus e o homem pode alcançar o fim para o qual foi criado. De facto, escreve Guilherme: "A arte das artes é a do amor... O amor é suscitado pelo Criador da natureza. O amor é uma força da alma, que a conduz como por um peso natural ao lugar e ao fim que lhe é próprio" (A natureza e a dignidade do amor, 1, PL 184, 379). Aprender a amar exige um caminho longo e empenhativo, que é subdividido por Guilherme em quatro etapas, correspondentes às idades do homem: a infância, a juventude, a maturidade e a velhice. Neste percurso a pessoa deve impor-se uma ascese eficaz, um forte domínio de si para eliminar qualquer afecto desordenado, qualquer cedência ao egoísmo, e unificar a própria vida em Deus, fonte, meta e força do amor, até alcançar o vértice da vida espiritual, que Guilherme define como "sabedoria". Na conclusão deste percurso ascético, experimenta-se uma grande serenidade e doçura. Todas as faculdades do homem inteligência, vontade, afectos repousam em Deus, conhecido e amado em Cristo.

Também noutras obras, Guilherme fala desta vocação radical ao amor a Deus, que constitui o segredo de uma vida bem sucedida e feliz, e que ele descreve como um desejo incessante e crescente, inspirado pelo próprio Deus no coração do homem. Numa meditação ele diz que o objecto deste amor é Amor com a "A" maiúscula, isto é, Deus. É Ele quem se derrama no coração de quem ama e o torna apto para o receber. Doa-se abundantemente e de tal modo que nunca falta o desejo desta saciedade. Este impulso de amor é o cumprimento do homem" (De contemplando Deo 6, passim, SC 61bis, pp. 79-83). Faz admirar o facto de que Guilherme, ao falar do amor a Deus, atribui uma importância notável à dimensão afectiva. No fundo, queridos amigos, o nosso coração é feito de carne, e quando amamos Deus, que é o próprio Amor, como não expressar nesta relação com o Senhor também os nossos sentimentos humaníssimos, como a ternura, a sensibilidade, a delicadeza? O próprio Senhor, fazendo-se homem, quis amar-nos com um coração de carne! 

Depois, segundo Guilherme, o amor tem outra característica importante: ilumina a inteligência e permite conhecer melhor e mais profundamente Deus e, em Deus, as pessoas e os acontecimentos. O conhecimento que procede dos sentidos e da inteligência reduz, mas não elimina, a distância entre o sujeito e o objecto, entre o eu e o tu. Ao contrário, o amor produz atracção e comunhão, chegando a alcançar uma transformação e uma assimilação entre o sujeito que ama e o objecto amado. Esta reciprocidade de afecto e de simpatia permite então um conhecimento muito mais profundo do que é realizado pela razão. Explica-se assim uma célebre expressão de Guilherme: "Amor ipse intellectus est já em si mesmo o amor é princípio de conhecimento". Queridos amigos, perguntemo-nos: não é precisamente assim na nossa vida? Porventura não é verdade que conhecemos realmente só quem e aquilo que amamos? Sem uma certa simpatia não se conhece ninguém nem nada! E isto é válido sobretudo no conhecimento de Deus e dos seus mistérios, que superam a capacidade de compreensão da nossa inteligência: só conhecemos Deus se o amamos!

Uma síntese do pensamento de Guilherme Saint-Thierry é contida numa longa carta dirigida aos Cartuxos de Mont-Dieu, junto dos quais ele se tinha deslocado em visita e aos quais quis encorajar e confortar. O douto beneditino Jean Mabillon jé em 1690 deu a esta carta um título significativo: Epistola aurea (Carta de ouro). Com efeito, os ensinamentos sobre a vida espiritual nela contidos são preciosos para todos os que desejam crescer na comunhão com Deus, na santidade. Neste tratado Guilherme propõe um itinerário em três etapas. É preciso diz ele passar do homem "animal" ao "racional", para alcançar o "espiritual". O que pretende dizer o nosso autor com estas três expressões? No início uma pessoa aceita a visão da vida inspirada pela fé com um acto de obediência e de confiança. Depois com um processo de interiorização, no qual a razão e a vontade desempenham um grande papel, a fé em Cristo é acolhida com profunda convicção e experimenta-se uma correspondência harmoniosa entre aquilo em que se crê e se espera e as aspirações mais secretas da alma, a nossa razão, os nossos afectos. Chega-se assim à perfeição da vida espiritual, quando as realidades da fé são fonte de alegria íntima e de comunhão real e satisfatória com Deus.

Vive-se só no amor e por amor. Guilherme funda este itinerário numa visão sólida do homem, inspirada nos antigos Padres gregos, sobretudo em Orígenes, os quais, com uma linguagem audaciosa, tinham ensinado que a vocação do homem é tornar-se como Deus, que o criou à sua imagem e semelhança. A imagem de Deus presente no homem estimula-o à semelhança, isto é, a uma identidade cada vez mais plena entre a própria vontade e a divina. A esta perfeição, que Guilherme chama "unidade de espírito", não se chega com o esforço pessoal, mesmo se sincero e generoso, porque é necessária outra coisa. Esta perfeição alcança-se pela acção do Espírito Santo, que habita na alma e purifica, absorve e transforma em caridade qualquer impulso e desejo de amor presente no homem. "Há depois outra semelhança com Deus", lemos na Epistola aurea, "que já não é chamada semelhança, mas unidade de espírito, quando o homem se torna um com Deus, um espírito, não só para a unidade de um querer idêntico, mas por não ser capaz de desejar outra coisa. Deste modo o homem merece tornar-se não Deus, mas aquilo que Deus é: o homem torna-se por graça aquilo que Deus é por natureza" (Epistola aurea 262-263, SC 223, pp. 353-355).

Queridos irmãos e irmãs, este autor, que poderíamos definir o "Cantor do amor, da caridade", ensina-nos a fazer na nossa vida a opção fundamental, que dá sentido e valor a todas as outras opções: amar a Deus e, por amor a Ele, amar o nosso próximo; só assim poderemos encontrar a verdadeira alegria, antecipação da bem-aventurança eterna. Ponhamo-nos portanto na escola dos Santos para aprender a amar de modo autêntico e total, para entrar neste percurso do nosso ser. Com uma jovem santa, Doutora da Igreja, Teresa do Menino Jesus, digamos também nós ao Senhor que desejamos viver de amor. E concluo precisamente com uma oração desta Santa: "Eu amo-te, e Tu o sabes, Jesus divino! O Espírito de amor incendeia-me com o seu fogo. Amando-te a Ti atraio o Pai, que o meu coração frágil conserva, sem trégua. Ó Trindade! És prisioneira do meu amor. Viver de amor, aqui na terra, é um doar-se desmedido, sem pedir recompensa... quando se ama não se fazem cálculos. Eu dei tudo ao Coração divino, que transborda de ternura! E corro ligeiramente. Nada mais tenho, e a minha única riqueza é viver de amor".

Fonte: Vatican.va

PROBLEMAS ACTUAIS DA FAMÍLIA





No passado dia 25 de Setembro, ao receber em Castel Gandolfo os Bispos da Conferência Episcopal do Brasil dos Regionais Nordeste 1 e Nordeste 4, em visita «ad limina Apostolorum», o Santo Padre quis falar-lhes dos problemas que afectam hoje a família.

A mentalidade secularizada, ao reduzir o matrimónio à convivência dos esposos, abre ainda mais a porta ao divórcio, às uniões de facto, etc., com consequências nefastas para a educação dos filhos.

O texto original é em português do Brasil. Título e subtítulos da Redacção de CL.


Caríssimos Irmãos no Episcopado

Sede bem-vindos! Com grande satisfação acolho-vos nesta casa e de todo coração desejo que a vossa visita ad Limina proporcione o conforto e o encorajamento que esperais. Agradeço a amável saudação que acabais de dirigir-me pela boca de Dom José, Arcebispo de Fortaleza, testemunhando os sentimentos de afeto e comunhão que unem vossas Igrejas particulares à Sé de Roma e a determinação com que abraçastes o urgente compromisso da missão para reacender a luz e a graça de Cristo nas sendas da vida do vosso povo.

Queria falar-vos hoje da primeira dessas sendas: a família assentada no matrimónio, como «aliança conjugal na qual o homem e a mulher se dão e se recebem» (cf. Gaudium et spes, 48). Instituição natural confirmada pela lei divina, está ordenada ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole, que constitui a sua coroa (cf. ibid., 48). Pondo em questão tudo isto, há forças e vozes na sociedade atual que parecem apostadas em demolir o berço natural da vida humana. Os vossos relatórios e os nossos colóquios individuais tocavam repetidamente esta situação de assédio à família, com a vida saindo derrotada em numerosas batalhas; porém é alentador perceber que, apesar de todas as influências negativas, o povo de vossos Regionais Nordeste 1 e 4, sustentado por sua característica piedade religiosa e por um profundo sentido de solidariedade fraterna, continua aberto ao Evangelho da Vida.

Sabendo nós que somente de Deus pode provir aquela imagem e semelhança que é própria do ser humano (cf. Gen 1, 27), tal como aconteceu na criação – a geração é a continuação da criação –, convosco e vossos fiéis «dobro os joelhos diante do Pai, de quem recebe o nome toda paternidade no céu e na terra, [para] que por sua graça, segundo a riqueza da sua glória, sejais robustecidos por meio do seu Espírito, quanto ao homem interior» (Ef 3, 14-16). Que em cada lar o pai e a mãe, intimamente robustecidos pela força do Espírito Santo, continuem unidos a ser a bênção de Deus na própria família, buscando a eternidade do seu amor nas fontes da graça confiadas à Igreja, que é «um povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo» (Lumen gentium, 4).

A redução do matrimónio à convivência dos esposos 

Mas, enquanto a Igreja compara a família humana com a vida da Santíssima Trindade – primeira unidade de vida na pluralidade das pessoas – e não se cansa de ensinar que a família tem o seu fundamento no matrimónio e no plano de Deus, a consciência difusa no mundo secularizado vive na incerteza mais profunda a tal respeito, especialmente desde que as sociedades ocidentais legalizaram o divórcio. O único fundamento reconhecido parece ser o sentimento ou a subjectividade individual que exprime-se na vontade de conviver. Nesta situação, diminui o número de matrimónios, porque ninguém compromete a vida sobre uma premissa tão frágil e inconstante, crescem as uniões de fato e aumentam os divórcios. Sobre esta fragilidade, consuma-se o drama de tantas crianças privadas de apoio dos pais, vítimas do mal-estar e do abandono e expande-se a desordem social.

A Igreja não pode ficar indiferente diante da separação dos cônjuges e do divórcio, diante da ruína dos lares e das consequências criadas pelo divórcio nos filhos. Estes, para ser instruídos e educados, precisam de referências extremamente precisas e concretas, isto é, de pais determinados e certos que de modo diverso concorrem para a sua educação. Ora é este princípio que a prática do divórcio está minando e comprometendo com a chamada família alargada e móvel, que multiplica os «pais» e as «mães» e faz com que hoje a maioria dos que se sentem «órfãos» não sejam filhos sem pais, mas filhos que os têm em excesso. Esta situação, com as inevitáveis interferências e cruzamento de relações, não pode deixar de gerar conflitos e confusões internas contribuindo para criar e gravar nos filhos uma tipologia alterada de família, assimilável de algum modo à própria convivência por causa da sua precariedade.

Regressar à família fundada no matrimónio uno e indissolúvel

É firme convicção da Igreja que os problemas atuais, que encontram os casais e debilitam a sua união, têm a sua verdadeira solução num regresso à solidez da família cristã, lugar de confiança mútua, de dom recíproco, de respeito da liberdade e de educação para a vida social. É importante recordar que, «pela sua própria natureza, o amor dos esposos exige a unidade e a indissolubilidade da sua comunidade de pessoas, a qual engloba toda a sua vida» (Catecismo da Igreja Católica, 1644). De fato, Jesus disse claramente: «O que Deus uniu, o homem não separe» (Mc 10, 9), e acrescenta: «Quem despede a sua mulher e se casa com outra, comete adultério contra a primeira. E se uma mulher despede o seu marido e se casa com outro, comete adultério também» (Mc 10, 11-12). Com toda a compreensão que a Igreja possa sentir face a tais situações, não existem casais de segunda união, como os há de primeira; aquela é uma situação irregular e perigosa, que é necessário resolver, na fidelidade a Cristo, encontrando com a ajuda de um sacerdote um caminho possível para pôr a salvo quantos nela estão implicados.

Para ajudar as famílias, vos exorto a propor-lhes, com convicção, as virtudes da Sagrada Família: a oração, pedra angular de todo lar fiel à sua própria identidade e missão; a laboriosidade, eixo de todo matrimónio maduro e responsável; o silêncio, cimento de toda a atividade livre e eficaz. Desse modo, encorajo os vossos sacerdotes e os centros pastorais das vossas dioceses a acompanhar as famílias, para que não sejam iludidas e seduzidas por certos estilos de vida relativistas, que as produções cinematográficas e televisivas e outros meios de informação promovem. Tenho confiança no testemunho daqueles lares que tiram as suas energias do sacramento do matrimónio; com elas torna-se possível superar a prova que sobrevém, saber perdoar uma ofensa, acolher um filho que sofre, iluminar a vida do outro, mesmo fraco ou diminuído, mediante a beleza do amor. É a partir de tais famílias que se há de restabelecer o tecido da sociedade.

Estes são, caríssimos Irmãos, alguns pensamentos que deixo-vos ao concluirdes a vossa visita ad Limina, rica de notícias consoladoras mas também carregada de trepidação pela fisionomia que no futuro possa adquirir a vossa amada Nação. Trabalhai com inteligência e com zelo; não poupeis fadigas na preparação de comunidades activas e cientes da própria fé. Nestas se consolidará a fisionomia da população nordestina segundo o exemplo da Sagrada Família de Nazaré. Tais são os meus votos que corroboro com a Bênção Apostólica que concedo a todos vós, extensiva às famílias cristãs e diversas comunidades eclesiais com seus pastores e todos os fiéis das vossas directas dioceses.

Fonte: http://www.cliturgica.org/artigo.php?id=1156

A CONVERSÃO DE TONY BLAIR



L’Osservatore Romano (ed. port., 26-IX-09) publicou uma entrevista de Giulia Galeotti a Tony Blair, primeiro ministro do Reino Unido em três mandatos sucessivos.
Damos a conhecer a primeira parte, em que fala da sua conversão à Igreja Católica.


Comecemos pelo seu recente ingresso na Igreja católica. Há dois anos, depois da visita ao Papa em Junho, o mundo começou a falar abertamente da sua conversão ao catolicismo. Pode contar-nos como nasceu esta decisão? 

A minha viagem espiritual teve início quando comecei a ir à missa com a minha esposa. Depois, quando decidimos baptizar os nossos filhos na fé católica. Trata-se de um caminho que prosseguiu por 25 anos, e talvez até mais. Com o tempo, emotiva, intelectual e racionalmente pareceu-me que a (Igreja) católica fosse a casa justa para mim. Mas aconteceu durante um longo intervalo de tempo. Quando deixei o cargo político, e já não tinha à minha volta todo o contexto relacionado com o facto de ser primeiro-ministro, foi algo que desejei deveras fazer.

A sua família era religiosa? 

Na realidade, não muito. A minha mãe, uma protestante proveniente da Irlanda, ia ocasionalmente à igreja. O meu pai, ao contrário, era um ateu militante. Mas, em Durham, frequentei a Chorister School, adjacente à catedral, portanto a religião foi parte integrante da minha educação escolar. Mas a verdadeira mudança vivi-a na universidade, quando comecei a considerar seriamente a minha fé cristã, a pensar nela de modo mais profundo. Foi então que compreendi que era um aspecto não só importante, mas absolutamente central da minha vida.

Sabe-se que, desde sempre, Cherie Booth é a católica praticante. Que significado teve a religião no vosso matrimónio? 

A religião foi algo que nos fez aproximar. Não nos conhecemos devido à religião, mas foi muito interessante descobrir que a minha futura esposa era extremamente activa na organização estudantil católica e noutras organizações juvenis. Para jovens de 23 ou 24 anos – como éramos quando nos conhecemos – não era frequente descobrir e partilhar este interesse pela religião.

Durante a sua última visita como primeiro-ministro, Vossa Excelência ofereceu a Bento XVI três fotografias de John Henry Newman. A escolha foi motivada pelo facto de que a figura do Cardeal Newman tinha desempenhado um papel no seu caminho de conversão? Ou para isso contribuíram outras figuras? 

Na realidade, não. Não foi esta a razão. Mesmo se obviamente conhecia a história do Cardeal Newman, e tinha lido os seus escritos. As fotografias eram simplesmente um presente apropriado. Em relação a outras figuras, tive a ventura de participar em 2003, com a minha família, numa missa que João Paulo II celebrou na sua capela particular: é uma recordação ainda muito viva, um episódio que me tocou profundamente. Sem dúvida, muito provavelmente teria chegado contudo à conversão, mas certamente tratou-se de uma etapa importante que fortaleceu ulteriormente a minha decisão. Uma das coisas que mais me atraiu da Igreja católica foi a sua natureza universal. Se és um católico, podes ir a todas as partes do mundo e participar na missa em qualquer país. Fui à missa em Kigali, em Pequim, em Singapura. Recordo a vez em que assisti a uma função em Tóquio: entrei incógnito, sem me fazer notar, mas no final da celebração uma senhora convidou os numerosos visitantes a apresentarem-se, pondo-se de pé. Fi-lo: sou Tony de Londres. Foi uma bonita surpresa (riu). Eis, o facto de que, onde quer que estejas no mundo, estás em comunhão com os outros, é verdadeiramente formidável. É um aspecto que me fascina. A Igreja universal é ela própria um importante modelo de instituição global.

Fonte: http://www.cliturgica.org/artigo.php?id=1171

João César das Neves | naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Na reunião da ONU sobre alterações climáticas arrogância é o facto mais importante, e menos referido. Os participantes consideram-se beneméritos e consolam-se na virtude das suas intenções escondendo enorme presunção.

Ela começa logo pela altivez de achar que o ser humano tem força suficiente para modificar o clima do planeta. A Terra é enorme e o seu sistema climático extremamente vasto e complexo. Na sua história o globo já passou por muitas fases, com enormes saltos e choques. Baseados em resultados preliminares de ciência assumidamente parcial e incompleta, alguns especialistas lançaram o alarme que este majestoso sistema cósmico está a ser modificado pelas emissões de um dos seus habitantes.

Mesmo que seja verdade, aparece o segundo pedantismo. Aquele punhado de dirigentes acha mesmo que as suas decisões vão conseguir mudar o rumo do progresso humano. Confiados na suposta omnipotência governamental, têm o atrevimento de se considerarem na cabine de controlo da humanidade inteira e, por isso, do universo. Todo o exercício é benévolo mas ingénuo e de uma tolice espantosa.

Nem a evidência esmagadora do falhanço de anteriores compromissos os impede de acreditar na eficácia do anúncio de limites e medidas avulsas que, na melhor das hipóteses, reduzirão algumas décimas de grau a temperatura mundial, se ela está mesmo a subir. Isso não surpreende. Nos anos 60 a ONU quis desenvolver os pobres, nos 70 reduzir o preço do petróleo, nos 80 limitar a corrida nuclear, nos 90 diminuir a população. Ainda não acertou uma.

Fonte: Blog O povo

A RAZÃO QUE SE ABRE AO MISTÉRIO TORNA-SE SABEDORIA

Homilia na Missa celebrada com os membros da Comissão Teológica Internacional




Publicamos o texto da homilia improvisada por Bento XVI durante a Missa presidida na manhã de 1 de Dezembro na Capela Paulina, na presença dos participantes na sessão plenária da Comissão Teológica Internacional.
 

Queridos irmãos e irmãs!
As palavras do Senhor, que há pouco ouvimos no trecho evangélico, são um desafio para nós teólogos, ou talvez para dizer melhor, um convite a um exame de consciência:  o que é a teologia? O que somos nós, teólogos? Como fazer bem teologia? Ouvimos que o Senhor louva o Pai porque escondeu o grande mistério do Filho, o mistério trinitário, o mistério cristológico, diante dos sábios, dos doutos eles não o conheceram mas revelou-o aos pequeninos, aos népioi, àqueles que não são doutos, que não têm uma grande cultura. A eles foi revelado este grande mistério.
Com estas palavras, o Senhor descreve simplesmente um facto da sua vida; um facto que começa já na época do seu nascimento, quando os Magos do Oriente perguntam aos competentes, aos escribas, aos exegetas, o lugar do nascimento do Salvador, do Rei de Israel. Os escribas sabem-no, porque são grandes especialistas; podem dizer imediatamente onde nasce o Messias:  em Belém! Mas não se sentem convidados a ir:  para eles é um conhecimento académico, que não diz respeito à sua vida; eles permanecem fora. Podem dar informações, mas a informação não se torna formação da própria vida.

Depois, durante toda a vida pública do Senhor, encontramos a mesma coisa. É inacessível para os sábios compreender que este homem não douto, galileu, possa ser realmente o Filho de Deus. Permanece-lhes inacessível o facto de que Deus, o grande, o único, o Deus do céu e da terra, possa estar presente neste homem. Sabem tudo, conhecem também Isaías 53, todas as grandes profecias, mas o mistério permanece escondido. Ao contrário, é revelado aos pequeninos, a começar por Nossa Senhora até aos pescadores do lago da Galileia. Eles conhecem, como também o capitão romano, aos pés da cruz, reconhece:  Ele é o Filho de Deus.

Os acontecimentos essenciais da vida de Jesus não pertecem unicamente ao passado, mas estão presentes, de vários modos, em todas as gerações. E assim também na nossa época, nos últimos duzentos anos, observamos a mesma coisa. Existem grandes doutos, grandes especialistas, grandes teólogos, mestres da fé, que nos ensinaram muitas coisas. Penetraram nos pormenores da Sagrada Escritura, da história da salvação, mas não puderam ver o próprio mistério, o verdadeiro núcleo:  que Jesus era realmente Filho de Deus, que Deus trinitário entra na nossa história, num determinado momento histórico, num homem como nós. O essencial permaneceu escondido! Poder-se-iam citar facilmente grandes nomes da história da teologia destes duzentos anos, dos quais aprendemos muito, mas o mistério não foi aberto aos olhos do seu coração.

Em contrapartida, no nosso tempo existem também os pequeninos que conheceram este mistério. Pensemos em Santa Bernadete Soubirous; em Santa Teresa de Lisieux, com a sua nova leitura da Bíblia "não científica", mas que entra no coração da Sagrada Escritura; até aos santos e beatos da nossa época:  Santa Josefina Bakhita, Beata Teresa de Calcutá, São Damião de Veuster. Poderíamos enumerar muitos deles!

No entanto, de tudo isto nasce a pergunta:  por que é assim? É o cristianismo a religião dos néscios, das pessoas sem cultura, não formadas? Apaga-se a fé onde se desperta a razão? Como se explica isto? Talvez tenhamos que olhar mais uma vez para a história. Permanece verdadeiro o que Jesus disse, aquilo que se pode observar em todos os séculos. E todavia, existe uma "espécie" de pequeninos que são inclusive doutos. Aos pés da cruz encontra-se Nossa Senhora, a humilde serva de Deus, a grande mulher iluminada por Deus. E encontra-se também João, pescador do lago da Galileia, mas é aquele João que será justamente chamado pela Igreja "o teólogo", porque realmente soube ver o mistério de Deus e anunciá-lo:  com olhos de águia, entrou na luz inacessível do mistério divino. Assim, mesmo depois da sua ressurreição o Senhor, no caminho de Damasco, sensibiliza o coração de Saulo, um dos sábios que não vêem. Ele mesmo, na primeira Carta a Timóteo, define-se "ignorante" naquela época, apesar da sua ciência. Mas o Ressuscitado toca-o:  ele torna-se cego e, ao mesmo tempo, realmente vidente, começa a ver. O grande douto torna-se um pequenino, e precisamente por isso vê a loucura de Deus que é sabedoria, sapiência maior do que todas as sabedorias humanas.

Poderíamos continuar a ler toda a história deste modo. Só mais uma observação. Estes doutos sábios, sofói e sinetói, na primeira leitura, aparecem de outro modo. Aqui, sofia e sínesis são dádivas do Espírito Santo que pairam sobre o Messias, sobre Cristo. O que significa? Sobressai o facto de que existe um uso dúplice da razão e uma maneira dupla de ser sábio ou pequenino. Há um modo de utilizar a razão que é autónomo, que se põe acima de Deus, em toda a gama das ciências, a começar pelas naturais, onde é universalizado um método adequado para a pesquisa da matéria:  Deus não faz parte deste método, portanto Deus não existe. E assim, finalmente, também na teologia:  pesca-se nas águas da Sagrada Escritura com uma rede que permite capturar somente peixes de uma certa medida, e aquilo que vai além desta medida não entra na rede, e por conseguinte não pode existir. Assim o grande mistério de Jesus, do Filho que se fez homem, reduz-se a um Jesus histórico:  uma figura trágica, um fastasma sem carne nem ossos, um homem que permaneceu no sepulcro, que se corrompeu e é realmente um morto. O método sabe "capturar" certos peixes, mas exclui o grande mistério, porque o homem se faz ele mesmo a medida:  possui esta soberba, que é contemporaneamente uma grande loucura, porque torna absolutos certos métodos não adequados às grandes realidades; entra neste espírito académico que vimos nos escribas, os quais respondem aos Reis magos:  não me diz respeito; permaneço fechado na minha existência, que não é tocada. É a especialização que vê todos os pormenores, mas já não vê a totalidade.

E existe o outro modo de utilizar a razão, de ser sábio, a do homem que reconhece quem ele mesmo é; reconhece a própria medida e a grandeza de Deus, abrindo-se na humildade à novidade do agir de Deus. Assim, precisamente aceitando a sua pequenez, fazendo-se pequenino como realmente é, chega à verdade. Desta maneira, também a razão pode expressar todas as suas possibilidades, não é anulada mas amplia-se, torna-se maior. Trata-se de outra sofia e sínesis, que não exclui do mistério, mas é precisamente comunhão com o Senhor, em quem repousam a sapiência e a sabedoria, e a sua verdade.

Neste momento, queremos rezar ao Senhor a fim de que nos conceda a verdadeira humildade. Que nos conceda ser pequeninos, para sermos realmente sábios; nos ilumine, nos faça ver o seu mistério do júbilo do Espírito Santo, nos ajude a ser verdadeiros teólogos, que podem anunciar o seu mistério porque foram tocados na profundidade do seu coração, da sua existência. Amém.

Fonte: L'osservatore Romano

É POR DENTRO QUE ENCONTRAMOS O FUNDAMENTO DA VIDA



Segunda feira, jantar fora. Terça feira, jantar fora. Quarta feira, jantar fora. Fim de semana, estar com os amigos! Sair e divertir-me. Enfim, uma vida cheia e da qual não nos podemos queixar. Mas a vida poderia ser bem diferente. Poderíamos não poder sair de casa, poderíamos, num caso extremo, não poder sair do nossa própria mente. Foi o que aconteceu a Rom Houben, como foi recentemente noticiado(ver no Público e na Zenit). Ficou 23 anos a habitar dentro do seu próprio “dentro”. Os médicos julgavam que estava em coma mas “apesar de completamente imóvel, Rom conseguia ouvir tudo o que lhe diziam. Ouvia os médicos falarem do seu estado de saúde e ouviu a mãe comunicar-lhe a morte do pai. Ouviu tudo isto sem poder chorar nem mexer a cabeça. Estava consciente e com um cérebro a funcionar, mas nunca conseguiu que o seu corpo comunicasse esse facto.”

O que impressiona não é este facto em si, porque, biologicamente tudo isto não deve causar admiração. O que, na verdade, causa admiração é que humanamente se possa viver assim. Viver com letra grande, viver com a dignidade que a vida em si mesma comporta. Recebida e não conquistada.

São elucidativas as frases que este homem, através de um sistema agora preparado para ele, finalmente fez passar para o mundo exterior. Cito:

1. “Impotente. Extremamente impotente. Inicialmente fiquei revoltado, mas depois aprendi a viver com isso”

2. “Viajei com os meus pensamentos para o passado, ou então para uma nova existência. Eu era apenas a minha consciência, e nada mais”


3. “Eu gritava sem que ninguém pudesse escutar”

4. “Fui testemunha do meu sofrimento enquanto os meus médicos tentavam falar comigo, até o dia em que renunciaram”

5. “Nunca esquecerei o dia em que me ‘descobriram’. Foi o meu segundo nascimento”

6. “agora quero ler, falar com meus amigos por meio do computador e aproveitar minha vida, agora as pessoas sabem que não estou morto”

Estas afirmações de Rom levam-me a concluir e a acreditar cada vez mais que é por dentro que encontramos o fundamento da vida. Não é numa escala de divertimentos e de condições materiais que a felicidade ou, se quisermos, a fecundidade humana se encontra. É preciso bem pouco. Basta a liberdade do olhar profundo de uma vida interior que a nossa sociedade deveria cultivar, mas que, talvez pela fragilidade dessa mesma liberdade, tantas vezes despreza.

A experiência de Rom diz-me, também, que na era da comunicação corremos, afinal, o risco de sempre. O de incomunicabilidade. Digo isto não pela “clausura” forçada deste homem, mas porque, tantas vezes, faltam as forças para acreditar que a comunicação existe e que, tal como Deus, é bem mais subtil do que os panegíricos e os flashes ultravelozes de uma banda-larga que, afinal pode ser bem estreita se não cuidarmos do nosso mundo interior e daquilo que nos constituí como humanidade viva, divina, e cheia de esperança.

Porque desistiríamos tão depressa da comunicação e do diálogo, só porque, a dada altura, nos pareceu que já não valia a pena? Porque subestimaríamos a vida? Não o faremos! Porque não somos condenados, mas homens livres. Desistir do homem seria a antítese da vocação humana.

É nos homens vivos que descobrimos o grande mistério da vida, essa comunicação inesgotável que só o amor pode criar, que brota de dentro de nós continuamente e que não tem outro desejo se não brotar. E aí sim, os jantares à semana, a noite de sábado, e quem sabe as viagens todas que poderei fazer no verão ganharão um sentido cem vezes superiror… ou então esse sentido estará todo no curto espaço dos dedos que ainda consigo mover ou da minha cadeira de rodas. Já não importa pois não? O que nos poderá faltar? Se, afinal, por dentro dos homens é que os homens são.


HUGO E RICARDO DE SÃO VITOR E RELAÇÃO ENTRE FÉ E RAZÃO

PAPA BENTO XVI


AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 25 de Novembro de 2009


Hugo e Ricardo de São Vítor

Queridos irmãos e irmãs!

Nestas Audiências de quarta-feira estou a apresentar algumas figuras exemplares de crentes, que se comprometeram a mostrar a concórdia entre a razão e a fé e a testemunhar com a sua vida o anúncio do Evangelho. Hoje, pretendo falar-vos de Hugo e Ricardo de São Vítor. Ambos se situam entre aqueles filósofos e teólogos conhecidos com o nome de Vitorianos, porque viveram e ensinaram na abadia de São Vítor, em Paris, fundada no início do século XII por Guilherme de Chapeaux. O próprio Guilherme foi mestre renomado, que conseguiu dar à sua abadia uma sólida identidade cultural. Em São Vítor, de facto, foi inaugurada uma escola para a formação dos monges, aberta também a estudantes externos, na qual se realizou uma síntese feliz entre os dois modos de fazer teologia, da qual já falei em catequeses precedentes: isto é, a teologia monástica, orientada sobretudo para a contemplação dos mistérios da fé na Escritura, e a teologia escolástica, que utilizava a razão para procurar perscrutar estes mistérios com métodos inovadores, e criar um sistema teológico.

Temos poucas notícias da vida de Hugo de São Vítor. São incertos a data e o lugar do nascimento: talvez na Saxónia ou na Flandres. Sabe-se que, tendo chegado a Paris – a capital europeia da cultura desse tempo – transcorreu o resto dos seus anos na abadia de São Vítor, onde foi primeiro discípulo e depois professor. Já antes da morte, no ano de 1141, alcançou uma grande fama e estima, a ponto de ser chamado um "segundo Santo Agostinho": de facto, como Agostinho ele meditou muito sobre a relação entre fé e razão, entre ciências profanas e teologia. Segundo Hugo de São Vítor, todas as ciências, além de serem úteis para a compreensão das Escrituras, têm um valor em si mesmas e devem ser cultivadas para ampliar o saber do homem, assim como para corresponder ao seu anseio por conhecer a verdade. Esta sadia curiosidade intelectual levou-o a recomendar aos estudantes que jamais limitassem o desejo de aprender e no seu tratado de metodologia do saber e de pedagogia, intitulado significativamente Didascalicon (sobre o ensino), recomendava: "Aprende de bom grado de todos o que não sabes. Será mais sábio do que todos aquele que terá querido aprender algo de todos. Quem recebe algo de todos, acaba por se tornar mais rico do que todos" (Eruditiones Didascalicae, 3, 14: PL 176, 774).

A ciência da qual se ocupam os filósofos e os teólogos chamados Vitorianos é de modo particular a teologia, que exige antes de tudo o estudo amoroso da Sagrada Escritura. Com efeito, para conhecer Deus não se pode deixar de começar a partir do que o próprio Deus quis revelar de si mesmo através das Escrituras. Neste sentido, Hugo de São Vítor é um típico representante da teologia monástica, totalmente fundada na exegese bíblica. Para interpretar a Escritura, ele propõe a tradicional articulação patrístico-medieval, ou seja, em primeiro lugar o sentido histórico-literal, depois o alegórico e anagógico, e por fim o moral. Trata-se de quatro dimensões do sentido da Escritura, que também hoje se redescobrem, pelo qual se vê que no texto e na narração oferecida se esconde uma indicação mais profunda: o fio da fé, que nos conduz para o alto e nos guia nesta terra, ensinando-nos a viver. Contudo, mesmo respeitando estas quatro dimensões do sentido da Escritura, de modo original em relação aos seus contemporâneos, ele insiste – e este é um aspecto novo – sobre a importância do sentido histórico-literal. Por outras palavras, antes de descobrir o valor simbólico, as dimensões mais profundas do texto bíblico, é preciso conhecer e aprofundar o significado da história narrada na Escritura: caso contrário – adverte com uma comparação eficaz – corre-se o risco de ser como que um estudioso de gramática que ignora o alfabeto. Para quem conhece o sentido da história descrita na Bíblia, as vicissitudes humanas parecem marcadas pela Providência Divina, segundo um seu desígnio bem ordenado. Assim, para Hugo de São Vítor, a história não é o êxito de um destino cego ou de um caso absurdo, como poderia parecer. Ao contrário, na história humana age o Espírito Santo, que suscita um diálogo maravilhoso dos homens com Deus, seu amigo. Esta visão teológica da história põe em evidência a intervenção surpreendente e salvífica de Deus, que realmente entra e age na história, quase se faz parte da nossa história, mas salvaguardando e respeitando sempre a liberdade e a responsabilidade do homem.

Para o nosso autor, o estudo da Sagrada Escritura e do seu significado histórico-literal torna possível a teologia verdadeira, isto é, a ilustração sistemática das verdades, conhecer a sua estrutura, a explicação dos dogmas da fé, que ele apresenta numa síntese sólida no tratado De Sacramentis christianae fidei (Os sacramentos da fé cristã), onde se encontra, entre outras, uma definição de "sacramento" que, aperfeiçoada ulteriormente por outros teólogos, contém aspectos ainda hoje muito interessantes. "O sacramento", escreve ele, "é um elemento corpóreo ou material proposto de modo externo e sensível, que representa com a sua semelhança uma graça invisível e espiritual, a significa, porque para esta finalidade foi instituído, e a contém, porque é capaz de santificar" (9, 2; PL 176, 317). Por um lado a visibilidade no símbolo, a "corporeidade" do dom de Deus, no qual contudo, por outro lado, se esconde a graça divina que provém de uma história: o próprio Jesus Cristo criou símbolos fundamentais. São portanto três os elementos que concorrem para definir um sacramento, segundo Hugo de São Vítor: a instituição por parte de Cristo, a comunicação da graça e a analogia entre o elemento visível, o material e o elemento invisível, que são os dons divinos. Trata-se de uma visão muito próxima da sensibilidade contemporânea, porque os sacramentos são apresentados com uma linguagem rica de símbolos e imagens capazes de falar imediatamente ao coração dos homens. É importante também hoje que os animadores litúrgicos, e em particular os sacerdotes, valorizem com sabedoria pastoral os sinais próprios dos ritos sacramentais – esta visibilidade e tangibilidade da Graça – cuidando atentamente da sua catequese, para que cada celebração dos sacramentos seja vivida por todos os fiéis com devoção, intensidade e júbilo espiritual.

Um discípulo digno de Hugo de São Vítor é Ricardo, proveniente da Escócia. Ele foi prior da abadia de São Vítor de 1162 a 1173, ano da sua morte. Também Ricardo, naturalmente, atribui um papel fundamental ao estudo da Bíblia, mas, ao contrário do seu mestre, privilegia o sentido alegórico, o significado simbólico da Escritura com o qual, por exemplo, interpreta a figura veterotestamentária de Benjamim, filho de Jacob, como símbolo da contemplação e vértice da vida espiritual. Ricardo trata este tema em dois textos, Benjamim Menor e Benjamim Maior, nos quais propõe aos fiéis um caminho espiritual que convida antes de tudo a exercer as várias virtudes, aprendendo a disciplinar e a ordenar com a razão os sentimentos e os impulsos interiores afectivos e emotivos. Só quando o homem alcança equilíbrio e maturação humana neste campo, está pronto para aceder à contemplação, que Ricardo define como "um olhar profundo e puro da alma sobre as maravilhas da sabedoria, associado a um sentido estático de estupefacção e admiração" (Benjamim Maior, 1, 4; PL 196, 67).

Por conseguinte, a contemplação é o ponto de chegada, o resultado de um caminho difícil, que exige o diálogo entre a fé e a razão, ou seja – mais uma vez – um discurso teológico. A teologia começa a partir das verdades que são objecto da fé, mas procura aprofundar o conhecimento com o uso da razão, apropriando-se do dom da fé. Esta aplicação do raciocínio à compreensão da fé é praticada de modo convincente na obra-prima de Ricardo, um dos grandes livros da história, o De Trinitate (A Trindade). Nos seis livros que a compõem ele reflecte com perspicácia sobre o Mistério de Deus uno e trino. Segundo o nosso autor, dado que Deus é amor, a única substância divina exige comunicação, oblação e dilecção entre duas Pessoas, o Pai e o Filho, que se encontram entre si num intercâmbio eterno de amor. Mas a perfeição da felicidade e da bondade não admite exclusivismos nem fechamentos: exige antes a presença eterna de uma terceira Pessoa, o Espírito Santo. O amor trinitário é participativo, concorde e requer superabundância de dilecção, gozo de alegria incessante. Isto é, Ricardo supõe que Deus é amor, analisa a essência do amor, o que está implicado na realidade do amor, chegando assim à Trindade das Pessoas, que é realmente a expressão lógica do facto de que Deus é amor.

Contudo Ricardo está consciente de que o amor, mesmo se nos revela a essência de Deus, nos faz "compreender" o Mistério da Trindade, contudo é uma analogia para falar de um Mistério que supera a mente humana, e – sendo poeta e místico – serve-se também de outras imagens. Por exemplo, compara a divindade com um rio, com uma onda amorosa que brota do Pai, flui e reflui no Filho, para ser depois felizmente difundida no Espírito Santo.

Queridos amigos, autores como Hugo e Ricardo de São Vítor elevam o nosso ânimo à contemplação das realidades divinas. Ao mesmo tempo, a imensa alegria que nos suscitam o pensamento, a admiração e o louvor da Santíssima Trindade, funda e apoia o compromisso concreto de nos inspirarmos neste modelo perfeito de comunhão no amor para construir as nossas relações humanas de todos os dias. A Trindade é deveras comunhão perfeita! Como mudaria o mundo se nas famílias, nas paróquias e em qualquer outra comunidade as relações fossem vividas seguindo sempre o exemplo das três Pessoas divinas, em que cada um vive não só com o outro, mas para o outro e no outro! Recordei isto há alguns meses no Angelus: "Só o amor nos torna felizes, porque vivemos em relação, e vivemos para amar e para ser amados" (L'Oss. Rom., ed. port. de 13 de Junho de 2009). É o amor que realiza este milagre incessante: como na vida da Santíssima Trindade, a pluralidade recompõe-se em unidade, onde tudo é complacência e júbilo. Com Santo Agostinho, tido em grande honra pelos Vitorianos, também nós podemos exclamar: Vides Trinitatem, si caritatem vides – contemplas a Trindade, se vês a caridade" (De Trinitate VIII, 8, 12).

EMANCIPAÇÃO E AUTONOMIA SÃO ALGUNS DOS SLOGANS QUE A MODERNIDADE HERDOU DE PAULO DE TARSO



Emancipação e autonomia são alguns dos slogans que a modernidade herdou de Paulo de Tarso. A afirmação é do filósofo francês Rémi Brague na entrevista que concedeu à IHU On-Line por e-mail, com exclusividade. Sobre a acusação de que o apóstolo teria corrompido a mensagem de Jesus, Brague argumenta que esta é uma invenção recente “tomada dos judeus cristãos dos inícios da era cristã. Encontra-se esta idéia, por exemplo, em Nietzsche, que a havia tomado de certas correntes da exegese protestante de seu tempo”. Para ele, “não há nenhuma ‘mensagem de Jesus’ que Paulo tenha deformado. Falar assim é ainda situar-se do ponto de vista muçulmano. Jesus não traz uma ‘mensagem’, ele traz sua própria pessoa divina e humana”. Brague fala, ainda, sobre “uma Europa doente”, que não renova suas gerações e denota uma crise mais fundamental, que é a do ódio à vida. “A humanidade está a ponto de realizar o sonho da filosofia moderna: fundamentar tudo sobre a liberdade. Concretamente, a busca da experiência humana, a continuação da vida humana sobre a terra depende cada vez mais da vontade do homem”. Para ele, é incorreto falar em valores cristãos, pois valores são mutáveis e circunscritos, e o cristianismo propõe mandamentos que são bons para todos os homens, de forma universal.


Brague leciona na Universidade Paris I, Sorbonne, na França. É autor de Europe, la voie romaine (Paris: Critérion, 1992), A Sabedoria do Mundo (Lisboa: Edições Piaget, 2002) e La Loi de Dieu. Histoire philosophique d’une alliance (Paris: Gallimard, 2005). Confira a íntegra da entrevista abaixo. A tradução é de Benno Dischinger.




Por: Márcia Junges , IHU ONLINE

IHU On-Line - Em outra entrevista à nossa publicação, o senhor afirma que vários dos grandes slogans do projeto moderno vêm de Paulo. Que slogans seriam esses?

Rémi Brague - Eu pensava na idéia segundo a qual a humanidade, chegada à idade adulta, já não necessitaria mais de preceptores (Gálatas 3, 25; 4, 2-3). Tal concepção está na base da idéia moderna de emancipação. Eu também penso na idéia de autonomia, no sentido etimológico do termo: ser sua própria lei, obedecendo à própria consciência (Romanos 2, 14). Penso, enfim, na imagem de um esquecimento do passado compensado por uma tensão de todo ser para frente (Filipenses 3, 13). Chesterton dizia que os tempos modernos estavam infestados de “virtudes cristãs tornadas loucas”. Temos algo de análogo com essas idéias paulinas.

IHU On-Line - Alguns autores muçulmanos acusam Paulo de ter corrompido a mensagem de Jesus. Qual é a base desta afirmação e o que o senhor pensa a respeito?

Rémi Brague - O problema do islã é que seu livro fundamental, o Corão, contém afirmações que não estão na Bíblia. O Antigo e Novo Testamentos confundidos até contradizem a Bíblia. O islã resolve essa questão dizendo que a Bíblia foi corrompida. Moisés teria recebido a Tora, e Jesus, o Evangelho (no singular!). O conteúdo destes livros seria, em grandes linhas, o mesmo do Corão, e anunciaria a vinda de Maomé. Mas a Tora e o Evangelho teriam, em seguida, sido traficados. Por quem? O Corão diz que os judeus tomam Uzayr pelo filho de Deus (IX, 30). Às vezes, se entendeu este nome obscuro como designando Esdras, pretenso corruptor da Tora. Tornar Paulo responsável por uma corrupção da mensagem de Jesus é uma invenção bastante recente, tomada dos judeus cristãos dos inícios da era cristã e dos quais alguns grupos teriam talvez durado até a conquista árabe no século VII. Encontra-se esta idéia, por exemplo, em Nietzsche, que a havia tomado de certas correntes da exegese protestante de seu tempo. Os muçulmanos assumem certas hipóteses da ciência bíblica cristã para criticar o cristianismo, de onde provém esta idéia sobre Paulo.

Não há nenhuma “mensagem de Jesus” que Paulo teria deformado. Falar, assim, é ainda situar-se do ponto de vista muçulmano. Jesus não traz uma “mensagem”, mas sim sua própria pessoa divina e humana. Ele é uma pessoa que fala, certamente, e diz coisas extraordinárias, além de curar os doentes e nutrir as multidões. E, sobretudo, realiza tudo como se fosse o próprio Deus que estaria em seu lugar: perdoar os pecados, expulsar os demônios etc. Trata-se de um evento que foi perturbador para os Doze e que derrubou Paulo no caminho de Damasco. Paulo difundiu sobre o evento da vida de Jesus uma interpretação determinada, que ele recebera dos Doze. Ele só transmite o que recebeu (1 Coríntios 11, 23-26).

IHU On-Line - O senhor afirma que a Europa está doente e que há uma crise de valores em curso. Que tipo de cristianismo emerge deste cenário?

Rémi Brague - Que a Europa esteja doente parece-me claro. Um continente inteiro que não renova suas gerações não pode estar em boa saúde. Mas eu espero não ter jamais falado de “valores”. Se há crise, não se trata de uma crise dos pretendidos “valores”. Falar de “valores” já é fomentar a crise. Com efeito, um valor é aquilo que eu decido que isto está bem. Por isso, posso mudar de valores a meu bel-prazer, como se penduram lampiões e depois se retiram para substituí-los por outros. Se sou eu que decido que tal ou tal bem tem um valor, eu também posso recusar-lhe de ter valor, se isso me serve.

E que, sobretudo não se fale de “valores cristãos”, como demasiados cristãos adquiriram o hábito de fazer. Como se houvesse valores cristãos, budistas, islâmicos ou mesmo leigos. O cristianismo não defende nenhum bem que só seria bom para ele. Os dez mandamentos e a caridade são bons, para todos os homens, sem exceção.

A crise mais fundamental é o ódio da vida. A humanidade está a ponto de realizar o sonho da filosofia moderna: fundamentar tudo sobre a liberdade. Concretamente, a busca da experiência humana, a continuação da vida humana sobre a terra depende cada vez mais da vontade do homem. Mas trata-se de perguntar por que precisamente este deveria obrigatoriamente escolher a vida. “Escolher a vida” é um conselho de Deus: “escolhei, pois, a vida, para que tu e tua posteridade vivam” (Deuteronômio 30, 19). Isso me pareceu há muito tempo uma evidência, pois, enfim, quem escolheria a morte? Eu me enganava. Somos disso perfeitamente capazes. O cristianismo que teria alguma chance de sair disso seria, talvez, justamente um cristianismo que se vinculasse ao Cristo, e não a “valores”.

IHU On-Line - Pensando na afirmação de Bérgson, de que “a democracia é de essência evangélica”, as bases igualitárias propostas por esse sistema político, tal como conhecemos hoje nas sociedades ocidentais, podem ser creditadas a Paulo em função do universalismo que propõe?

Rémi Brague - Sim, a idéia de igualdade de todos os seres humanos, homens ou mulheres, livres ou escravos, judeus e pagãos diante de Deus é uma idéia de Paulo. Ele retoma sucessivamente os grandes desníveis do mundo antigo, tanto grego como judeu, para recusar-lhes toda outra pertinência além da puramente funcional. A “democracia” grega se fundava na superioridade dos homens sobre as mulheres, dos gregos em relação aos bárbaros, e sobre a exclusão dos escravos da vida pública. O judeu piedoso, de seu lado, agradece a Deus todas as manhãs por não tê-lo feito mulher, escravo ou pagão.

No entanto, é preciso não esquecer que o próprio Paulo se enraíza numa tradição bem mais antiga. O Antigo Testamento é, em todo o caso, o único livro que nos legou a Antigüidade, no qual se encontra uma crítica da instituição monárquica (1 Samuel 8, 11-17), e não somente de tal ou tal rei concreto.

Tudo isto se funda na capacidade que se supõe que todo homem possua, de ter acesso direto e imediato a Deus. Sem esta suposição, pode-se perguntar se nossas democracias (que certamente são imperfeitas) não desapareceriam, deslizando irresistivelmente para regimes de castas. Quem estaria no poder? Os engenheiros? Os militares? Os biólogos? Os psicólogos? Os homens da mídia? Isso importaria muito pouco. Em todo o caso, uma elite procuraria imitar, não Deus, seguramente, mas a imagem perversa que faria da divindade: um manipulador, um condutor de marionetes todo-poderoso, um policial infalível, um feiticeiro. Em todo o caso, esse Deus não teria grande coisa a ver com aquele que nos mostra Jesus Cristo.

IHU On-Line - Sob que aspectos o projeto de um humanismo ateu é incompatível com o cristianismo?

Rémi Brague - Não é somente por ser ateu que este projeto seria incompatível com o cristianismo. É também porque ele não é verdadeiramente humanista, mas se volta contra o homem, ou antes, contra os homens concretos. As tentativas de humanismo ateu levaram todos à catástrofe e produziram em alguns anos mais crimes que as religiões em muitos séculos. Todas se atribuíam um modelo do homem (o ariano, o proletário) e quiseram liquidar tudo o que não lhe correspondia. Isso é exigido pela lógica imanente desse projeto. Ou todo homem é objeto do amor e do respeito de Deus, ou certos homens são mais humanos do que outros. Eu não digo: mais belos, mais fortes, mais inteligentes, desigualdades evidentes que só podem fundamentar classificações em vista de diferentes papéis sociais. Eu digo: mais dignos de ser humanos e, então, de serem tratados como tais. Seria, então, preciso conceber-se um modelo do que é ser plenamente humano. E estes homens, mais homens do que os outros, teriam o direito de dominar àqueles e, no limite, o dever moral de eliminá-los.

Acredita-se, então, verdadeiramente no projeto de um humanismo desse gênero? Ouve-se falar cada vez mais de um “transumanismo ”, de uma transformação do homem por meios técnicos e biológicos. Que isso seja tecnicamente possível ou não, que isso seja moralmente aceitável ou não, estes dois problemas não me interessam aqui. Mas são um sintoma forte de uma insatisfação de si, e mesmo de um ódio de si!

Além disso, é preciso notar uma virada interessante na crítica que se dirige ao cristianismo. Este é considerado responsável por tudo, mas também pelo contrário de tudo. Há muito tempo lhe foi atribuída a suspeita de rebaixar o homem, de desprezá-lo, de humilhá-lo, de ter dele uma visão “negra”. Basta pensar na crítica de Pascal feita por Voltaire, no final das Lettres philosophiques. Acusa-se agora o cristianismo, desde Schopenhauer (que se apoiava, aliás, sobretudo no Antigo Testamento), de privilegiar em demasia o homem em relação aos animais. E agora certos ecologistas o acusam de fazer do homem um tirano que se rebela contra a deusa Terra.

IHU On-Line - O senhor sugere que os cristãos devem tornar-se melhores. Que ética pode sedimentar uma nova prática cristã?

Rémi Brague – Não é que os cristãos são os que devem tornar-se melhores! Todos os homens têm este dever com a maior urgência. E não se trata de sugeri-lo, é preciso gritá-lo. E gritá-lo em primeiro lugar a si próprio.

Uma ética? O projeto de uma prática autenticamente cristã nos conecta de vez ao domínio da ética. O cristianismo tem esta particularidade entre as religiões: a de não ter trazido nenhuma regra nova. Nenhuma regra moral, bem entendido, pois isso não é de qualquer modo possível. Mas também nenhum sistema social, nenhuma prática de culto, nenhuma prece, nenhum sacrifício, nenhuma peregrinação que fossem determinantes. Tudo isso é deixado à iniciativa de quem crê. As regras morais do cristianismo não são outras senão aquelas elementares que, em todos os tempos, permitiram às sociedades subsistirem. O cristianismo tem, em compensação, um tesouro que ele talvez seja o único a possuir ainda. É a afirmação da bondade do mundo, de um mundo que Deus ama e que Ele quis salvar. As regras morais permitem viver bem. Somente a fé permite crer que é bom viver.


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