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A ÉPOCA DA MORTE DE DEUS

"O período que vai do fim do século XIX ao começo da Segunda Guerra Mundial traz consigo forças que parecem ameaçar a Igreja numa escala nunca vista anteriormente. É o laicismo de cunho liberal, que proclama abertamente a meta de lutar contra a moral cristã. É o ateísmo, que se alimenta do positivismo e do materialismo nas suas diversas vertentes – freudismo, darwinismo, marxismo... É o cientificismo, a “religião da ciência” que, apoiada na teoria evolucionista, lançará o mito do progresso. Enfim, é todo um conjunto de ideologias que se erguem para proclamar que homo homini deus – em lugar do velho Deus assassinado, agora o homem é deus para si mesmo. Mas esse novo deus não tardará a revelar a sua verdadeira face demoníaca nos totalitarismos triunfantes, ao passo que a Igreja continuará dando mostras patentes da sua santidade por toda a Terra."
Por Daniel-Rops
O DESAFIO Era em Weimar, aos 25 de agosto de 1900. Na modesta casa em que os parentes o tinham recolhido, só e demente, estava um homem prestes a morrer. Era um escritor cujas obras não tinham despertado muito eco entre os contemporâneos, mas que, cinqüenta anos depois, iria aparecer à humanidade como o profeta dos seus abismos: Friedrich Wilhelm Nietzsche. Na estranha autobiografia que, sob o título sutilmente sacrílego de Ecce Homo, escrevera imediatamente antes de a doença o fulminar, liam-se estas frases terríveis, em que o orgulho luciferino andava de mistura com a angústia: “Onde está Deus? Eu o vou declarar: matamo-lo – vós e eu! Sim, todos nós somos seus assassinos. Mas como foi que pudemos fazê-lo? Como pudemos nós esvaziar o mar? A envergadura de tal ação não era demasiada para nós? Porque a verdade é que jamais houve ação maior que esta, e é por isso que aquele que nos suceder nesta Terra pertencerá a uma história mais alta que toda a História. Deus morreu! Deus morreu! E fomos nós que o matamos!” No preciso momento em que desaparecia o autor dessa certidão blasfema, um velho, muito velho, também ele à beira do grande limiar, tomava solenemente a palavra, por duas vezes, a fim de entregar ao mundo o cerne da sua mensagem. Em 25 de maio de 1899, a encíclica Annum sacrum do papa Leão XIII consagrava a humanidade inteira ao Sagrado Coração de Jesus, símbolo do amor que o Deus feito homem tem por todos os homens, mesmo por aqueles que o ignoram, mesmo até por aqueles que o combatem ou negam. E, no dia 1º de novembro de 1900, iria sair uma outra encíclica, Tametsi futura – nova página mística, em que o sacrifício redentor de Cristo seria apresentado como a explicação última de tudo o que na terra se cumpre, o alfa e o ômega do homem e do seu destino. É no confronto desses textos que se manifesta o drama espiritual que tem por teatro e por troféu tanto o século XIX como o século XX, seu herdeiro. De um lado, homens – de quem Nietzsche é o intérprete mais lúcido – que, levando ao cúmulo a rebelião da inteligência, empurram Deus para o meio dos fantasmas vãos ou dos cadáveres em decomposição. Do outro lado, fiéis – cujo guia e porta-voz é um papa de gênio – que vão buscar à situação inquietante em que vêem a cristandade motivos para serem mais audazes, mais eficazes, mais dedicados, e que, longe de admitirem que Deus desapareceu da terra, proclamam a sua soberania universal. É como que uma aposta. A Igreja de Jesus Cristo desafia aqueles que o negam. Há mais de um século que a história religiosa não é senão a história desse desafio.
Clique aqui para ler a conclusão desse ótimo artigo retirado do livro de Daniel Rops "História da Igreja", vol. IX, Quadrante, São Paulo, 2006.

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