Apesar de trechos quase engraçados, obra é fraca e óbvia na birra com deus
LUIZ FELIPE PONDÉ – COLUNISTA DA FOLHA
LUIZ FELIPE PONDÉ – COLUNISTA DA FOLHA
Existem escritores que beiram a unanimidade. Chegam a ser vistos como “um bem da humanidade“. Saramago é um desses. Alguns de seus títulos são mesmo pérolas. Viajei por Portugal lendo seu livro “Viagem a Portugal” e foi uma experiência fascinante.
Infelizmente, seu mais recente romance, “Caim“, não faz jus a sua história. Mais do que isso, “Caim” aponta para alguns limites de sua interpretação de mundo, e isso é importante na obra de um escritor do porte de José Saramago.
Sua fórmula para discutir a herança bíblica está esgotada e é hoje conhecida por qualquer criança no jardim da infância: oressentimento contra Deus porque existe sofrimento no mundo. Trata-se de um caso derivado do ressentimento do qual fala Nietzsche: você não suporta o sofrimento, então culpa algo, o deus de Saramago (escrevo aqui com minúscula, como ele escreve no livro), pelo sofrimento e sonha com um mundo sem dor (o mundo dos homens bonzinhos de Rousseau e seus derivados). Saramago torna explícito o fato que a crítica a Deus pode ser ela mesma uma forma de covardia diante da dureza da vida.
Saramago parece não ter percebido ainda que não é o “fator Deus” que leva os homens a serem a besta fera que são, mas sim o “fator Homem” que gera a bestialidade histórica de que ele tanto reclama. Como todo ateu (será mesmo?), não consegue deixar Deus em paz.
Em poucas palavras, afora a escrita, como sempre em cascata, e trechos quase engraçados, o livro é fraco e óbvio na sua birra. A raiva e o ressentimento para com deus nos fazem pensar que estaríamos diante de um palavrório adolescente. Como em todo ressentimento, falta humildade.
Carência afetiva
Caim, famoso por matar Abel, os dois filhos de Adão e Eva, é seu herói, revoltado contra deus e sua descarada preferência pelo irmão. Depois de apresentar Abel como um irmão que humilha seu irmão mal-amado (o que não bate com a tradição bíblica), Caim porá o dedo na cara de deus e cobrará dele o que eu chamaria de “afetividade democrática”: deus deveria amar a todos igualmente. O pobre Caim não consegue lidar com sua carência afetiva. Esse tipo de demanda dá sono.
Daí, Saramago se põe a reler vários eventos da Bíblia hebraica (ou Velho Testamento), tais como a torre de Babel, o dilúvio, o quase sacrifício do filho de Abraão, Isaac, entre outros, sempre a partir do ressentimento contra um deus que não ama a todos devidamente, assim como o irmão Chavez ama devidamente a todas as suas criaturas. Mesmo Lilith, figura máxima do feminismo bíblico ressentido, aparece como grande parceira de Caim nesta aventura que fala de como deus não é legal.
Saramago parece não perceber que grande parte do relato inicial da Bíblia fala da condição humana para além do que gostaríamos que ela fosse: somos frágeis, mortais, insuficientes, e por isso nos revoltamos. O sentido da vida é opaco para nossa inteligência.
A solução de Saramago parece ser supor que se “matarmos deus”, nós deixaremos de ser frágeis, mortais, covardes, cruéis e entenderemos o sentido final da vida, e ela ficará então satisfatória. Talvez se ele não tivesse sido contaminado pelo blá-blá-blá marxista sobre a religião, perceberia que existe toda uma literatura de peso que discute isso.
Caro leitor, para entender a relação entre Caim e Abel (cujos sacrifícios eram bem recebidos por Deus), não precisa de muita retórica, e aí você verá como Saramago, e outros que insistem no ressentimento infantil quando discutem a tradição bíblica, perdem o foco da coisa.
Basta lembrar o seguinte: você já topou na vida com alguém que seja melhor do que você? Mais bonito, mais inteligente, mais forte, mais rico, mais sensível, mais generoso, mais amado pelos outros, enfim, melhor do que você? Alguém já o fez sentir sua própria mesquinhez, pobreza de espírito, estupidez, covardia, enfim, você já sentiu o negrume da inveja sufocar sua alma? Você já teve “vontade de matar” algum Abel na vida? Respire fundo e veja se você não vê a marca de Caim (a inveja) na sua testa.
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