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SEM CLAREZA JURÍDICA, A LIBERDADE RELIGIOSA FICA FRAGILIZADA

14 Sep 2009
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Na noite de 26 de agosto, em sessão extraordinária, a Câmara dos Deputados ratificou o Acordo entre o Brasil e a Santa Sé sobre o estatuto jurídico da Igreja Católica em nosso país. O Acordo estava sendo longamente desejado, pois desde a Republica e a adoção do “Estado laico” no Brasil, faltava clareza e segurança jurídica para a presença e a atuação da Igreja Católica e das demais Igrejas e religiões. Não basta garantir teoricamente a liberdade religiosa, o que poderia ser como um pacote de presente, belo por fora, mas vazio. O exercício desse direito pode expressar-se na abstenção de qualquer convicção e manifestação religiosa; mas o que mais acontece, é a sua atuação positiva mediante a adesão a religiões, instituições, organizações religiosas e maneiras de interação com a sociedade.
Sem clareza jurídica, a liberdade religiosa fica fragilizada e até exposta a arbitrariedades e constrangimentos. E o Estado laico também fica de mãos atadas, sem saber como proceder quando a liberdade religiosa é invocada como pretexto para cometer ilícitos e explorar economicamente, em função de lucro privado, as necessidades e sentimentos religiosos do povo. Como coibir, por exemplo, o charlatanismo e a exploração da boa fé do povo? Como levar à justiça o infrator que lesa a população e o Estado, se ele pode sempre apelar para uma liberdade religiosa vaga e mal interpretada? A clareza nas relações da religião com a sociedade, e do Estado com ela, é um bem para todos.
É esta clareza jurídica que o Acordo visa, no que se refere à Igreja Católica, que tem na Santa Sé seu representante e interlocutor com os Estados, na esfera do Direito internacional. A diplomacia da Santa Sé tem uma praxe longa e consolidada de acordos, tratados, concordatas ou convênios com muitos países; são instrumentos reconhecidos do Direito internacional, através dos quais a Igreja Católica, em entendimento com os Estados, clareia o modo de sua presença e atuação nesses países, e também sua contribuição às sociedades locais, em benefício da população. Esses tratados são estabelecidos pela Santa Sé com numerosos países, e não apenas com nações de maioria católica ou cristã, mas também onde os católicos são pequena minoria, como Israel, ou países de predominância islâmica, como a Tunísia e o Marrocos. Mas também com Estados declaradamente laicos.
O Acordo não pretende privilégios para a Igreja Católica, mas a segurança jurídica, como garantia efetiva do exercício da liberdade religiosa. Dessa clareza também faz parte a própria organização interna, que pode ser muito diversa de uma religião para outra: quem é quem dentro delas, quem as representa e é seu legítimo interlocutor com a sociedade. Esta clareza interna, por certo, não falta à Igreja Católica, que a expressa no seu Direito Canônico, antigo e público, e onde também ficam manifestos seus propósitos e sua metodologia de ação.
Não faltaram questionamentos e argumentações contrárias, antes que se chegasse à ratificação do Acordo na Câmara. No contexto pluralista do Brasil atual, isso é bem compreensível, pois a matéria, de certa forma, era nova na opinião pública; a ocasião foi boa até mesmo para uma reflexão, a busca de esclarecimentos e a superação de eventuais preconceitos. Argumentou-se com veemência, por exemplo, que o Acordo feria a Constituição, enquanto houve todo o cuidado em respeitar a Lei maior e a restante legislação brasileira. Tentou-se negar a legitimidade do Acordo, com a alegação de que o Brasil é um Estado laico; no entanto, acordos dessa natureza partem, justamente, da aceitação da laicidade do Estado e confirmam este princípio; por essa razão é que a Santa Sé busca formas “concordadas” de relacionamento da Igreja com Estados não religiosos e sem religião oficial.
Houve também conclusões equivocadas de que a Igreja Católica voltaria a ser a religião oficial no Brasil, que ela imporia seu ensino religioso a todos os alunos das escolas públicas e pretendia a isenção das leis trabalhistas. Tudo infundado, era só ler com isenção os termos do Acordo. Houve ainda alertas e até acusações de que a Igreja Católica buscava privilégios, discriminando outros grupos religiosos. Também isso é inconsistente, pois o mesmo direito de pleitear instrumentos jurídicos concordados com o Estado também estava assegurado aos demais grupos religiosos, bastando que se organizassem. E seria bom assim; nada melhor, no Estado laico, que a clareza nas relações da religião com a sociedade.
Finalmente, o bom senso prevaleceu na Câmara e o Acordo recebeu a aprovação; ficou claro que as alegações contrárias não eram convincentes contra a legitimidade e a legalidade do tratado Brasil-Santa Sé. O fato é que, uma vez aprovado, o texto foi proposto logo, quase ipsis litteris, num projeto de “Lei geral das religiões” e aprovado na mesma hora, sem discussão, nem convocação de audiências públicas. Aquilo que, antes, fora considerado inaceitável, absurdo e contrário aos interesses do povo, incompatível com o Estado laico, deixou de sê-lo num piscar de olhos. Terá sido pelo adiantado da hora daquela sessão extraordinária noturna?
O Estado, por certo, continua laico e pode celebrar acordos e entendimentos com quem quer que seja, no respeito às suas próprias leis. No entanto, ao passar para uma legislação geral organizações tão diversas, como as religiões, será que não houve um cochilo longo demais? Na Roma antiga, neste caso, a recomendação aos homens ilustres do Senado, provavelmente, teria sido esta: Videant Cônsules.

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