Verificou-se uma profunda mutação cultural na Europa e, a partir dela, no conjunto da humanidade que designamos por Ocidente. Esta evolução da cultura ocidental torna-se cada vez mais complexa com o fenómeno da globalização. Os adjectivos desta evolução são variados mas revelam-se incapazes de a definir na sua totalidade: secularismo, iluminismo, racionalismo, etc. Nós adoptamos, aqui, o adjectivo secularista, porquanto ele tem na sua raiz um conceito aceite pelo pensamento cristão: a dimensão secular. Mas quando, para afirmar a justa autonomia das realidades seculares – pertencendo a «hoc saeculum» – as separam de toda a transcendência, procurando uma autonomia total do homem, faz-se do secularismo uma nova fé, uma nova antropologia, uma nova inspiração moral. No que diz respeito à evangelização, o secularismo provocou uma profunda ruptura na transmissão da fé. Num relatório preparado pela Assembleia Plenária do Conselho Pontifício da Cultura, pode ler-se: “A Assembleia Plenária de 2002, ao aprofundar as razões da profunda ruptura na transmissão da fé que conhecem as sociedades secularizadas, sublinhou as consequências ruinosas da pressão do secularismo sobre o tecido social elaborado por séculos de culturas tradicionais: ele desmorona-se, deixando o homem entregue a si mesmo, desamparado, privado da bússola que lhe permitia orientar a sua vida de acordo com os valores profundamente enraizados no seu ser”.
Isto não significa que toda a vida e cultura de hoje estejam secularizadas. Os principais valores fundamentam-se no cristianismo e os cristãos continuam a ser numerosos no seio dessas sociedades. Mas isso não evitou a ruptura. Citemos, uma vez mais, o relatório já mencionado: “Convém, no entanto, notar que o secularismo da sociedade não se encontra tão amplamente espalhado como pretendem fazer crer a comunicação social e os meios culturais dominantes (...). Paradoxalmente, a cultura popular impregnada do cristianismo está viva em muitos lugares, sobretudo fora das grandes metrópoles, mas ela é pouco activa, pouco presente na vida social, e, por isso, incapaz de a influenciar. Muitos daqueles que se declaram católicos estão impregnados pela cultura ambiente, o seu comportamento é cada vez mais secularizado, e parecem alérgicos a toda a referência moral”.
Esta ruptura na transmissão da fé é um elemento preocupante a ter em conta quando se tenta encontrar os novos caminhos de transmissão da fé neste contexto cultural. Apresentamos seguidamente algumas concretizações desta ruptura e as interpelações que elas suscitam em termos de concepção da evangelização.
Ruptura entre racionalidade e inteligibilidade da fé
O elemento-chave que desencadeou esta mutação cultural foi, certamente, a euforia da razão lógica, que teve um impacto muito forte na pesquisa científica, a qual, mergulhando nas técnicas, acabou por transformar o dia-a-dia das pessoas e das sociedades. Este triunfo da razão fez com que o homem se creia apto a ter o seu destino na mão: ele sente-se capaz de tudo fazer e de tudo resolver, sente-se a fonte e o senhor da sua verdade, o juiz da moralidade, o único responsável da sua realização e da sua felicidade. Perante este triunfalismo das capacidades da razão, que garantiria a autonomia total do homem, Deus não encontra lugar; de inexistente passa a inútil, sem qualquer papel na vida do homem e na sua história. Dado que toda a verdade racional deve ser verificada, Deus não tem lugar no horizonte da racionalidade, sendo relegado para a esfera do subjectivo. Citemos um texto de Joseph Ratzinger: “Esta Europa , depois do Renascimento, e de uma maneira integral depois do Iluminismo, desenvolveu esta racionalidade científica (...) que actualmente, de forma muito mais profunda, graças à cultura técnica que a ciência tornou possível, deixa verdadeiramente a sua marca em tudo e em todo o lado. E, no seguimento desta forma de racionalidade, a Europa desenvolveu uma cultura que, de uma forma até agora desconhecida da humanidade, exclui Deus da consciência pública, seja quando ele é totalmente negado, seja quando a sua existência se considera como não demonstrável, incerta, e, portanto, relativa à esfera das escolhas subjectivas, irrelevante para a vida pública” (A Europa de Bento na crise de culturas, p. 24).
Esta mentalidade racionalista influencia profundamente as pessoas, as famílias e os jovens, tornando difícil a comunicação da fé. A fé em Deus e no seu Filho Jesus Cristo não pode fundar-se nesta racionalidade que exige certezas fundadas na evidência. As verdades da fé são facilmente recusadas porque aparecem como irracionais. Mas então devemos classificar como irracionais todos os outros caminhos humanos de chegar ao conhecimento: o amor, os símbolos, a beleza e a emoção estética. Estes são meios para obter uma compreensão e um conhecimento da realidade, aos quais o raciocínio não chega, mas que podem ser acolhidos e integrados na racionalidade humana.
A formação cristã deve estabelecer esta inteligibilidade da fé, que se não é racional no sentido positivista da palavra, não é, no entanto, irracional. Ela é pensável. A experiência religiosa é verificável e a razão é também uma capacidade de acolhimento dos conhecimentos que nela não encontram a sua origem. Deus é mais fácil de amar do que compreender e justificar, e esta experiência de amor revela-se uma poderosa fonte de conhecimento, de Deus e do homem. A fé tem o seu lugar na dimensão mais global da racionalidade humana. Sem estabelecer a inteligibilidade da fé, esta não terá lugar no âmbito da inteligência e da liberdade do homem.
Ruptura entre as capacidades do homem e a consciência da sua fraqueza e da sua necessidade da ajuda de Deus
O triunfalismo da razão e das suas capacidades ilimitadas conduziu a uma concepção da vida como resultado exclusivo das capacidades naturais do homem: o homem não pode contar senão consigo próprio para ter sucesso: a felicidade e o fracasso são o resultado das suas capacidades e da sua liberdade.
Este optimismo esvazia a cruz de Cristo, como dizia Santo Agostinho na sua polémica com Pelágio. Trata-se verdadeiramente de um «neo-pelagianismo». Ora a compreensão cristã da vida humana é a de uma vida habitada por Deus, que se tornou Deus connosco no seu Filho Jesus Cristo. Mesmo para realizar plenamente as suas capacidades naturais, o homem tem necessidade da força do Espírito de Deus. A ruptura entre a natureza e a graça, que na história teve expressões opostas, o optimismo pelagiano e o pessimismo luterano, parece estar resolvido na cultura contemporânea ao anular-se a graça e baseando a possibilidade de sucesso nas capacidades humanas e na liberdade. Trata-se de uma nova síntese ingénua, que é questionada pela longa história de sofrimentos e de agressões à dignidade humana. O cristianismo oferece uma síntese outra, a da valorização das capacidades naturais do homem, levadas à plenitude com a ajuda de Deus, que bem conhece a nossa grandeza e as nossas debilidades.
Ruptura entre liberdade e responsabilidade
Uma das ideias principais da modernidade é o valor decisivo da liberdade individual. Aliada à autonomia da razão, o homem, pelo exercício da sua liberdade, escolhe a sua verdade, decide sobre as opções morais, torna-se o centro e o juiz da história. Considerada sobretudo como um direito do indivíduo, esta concepção da liberdade conduz a uma visão individualista da vida que apaga ou relativiza a dimensão comunitária, a única a exigir que a liberdade seja exercida na responsabilidade de cada um pelos demais, o que constitui o necessário enquadramento do amor e da fraternidade.
Este facto não é completamente negativo, e tem a vantagem de acentuar a dignidade da liberdade, um dos dinamismos onde se exprime a nossa semelhança com Deus. São Paulo ensina que é para a liberdade que Cristo nos libertou. Educar para a liberdade é uma dimensão determinante de toda a formação cristã. Em Cristo, a verdadeira liberdade não é um “fazer aquilo que queres”, mas afirma-se como uma capacidade de discernir nos caminhos do bem o que é melhor, de escutar os outros – em primeiro lugar Jesus Cristo, o Deus connosco na aventura da vida – uma capacidade de discernimento e de acolhimento da verdade. O exercício da liberdade, mais do que individual, é pessoal, inserido na comunidade. Esta evolução cultural, que começou por relegar Deus para o campo da subjectividade do indivíduo, procedeu da mesma forma para a verdade, para a moral e, por fim, para a liberdade.
Ruptura entre a mentalidade científica e a moral
Uma visão estritamente individual da moral é grave, dado que ela compromete ou acaba mesmo por impedir uma moral comunitária, baseada em valores morais válidos para toda a comunidade. Mas há um fundo ainda mais preocupante: a mentalidade científica, assumida por todos através da revolução técnica, incapaz de definir regras morais para toda a humanidade, acentua a dimensão subjectiva da moral, que no entanto é incapaz de ser a resposta verdadeiramente humana às ameaças da própria técnica. Cito, uma vez mais, J. Ratzinger: “A força moral não é considerada ao ritmo do desenvolvimento da ciência; bem ao contrário, ela diminuiu, porque a mentalidade técnica relegou a moral à esfera do subjectivo, quando nós temos necessidade de uma moral pública, uma moral que saiba responder às ameaças que pendem sobre existência de todos nós. Neste momento, o verdadeiro perigo, o mais grave, encontra-se exactamente neste desequilíbrio entre as possibilidades técnicas e a energia moral. A segurança de que temos necessidade como condição preliminar da nossa liberdade e da nossa dignidade não pode vir, em última instância, de sistemas técnicos de controlo, mas apenas da força moral do homem. Onde ela falta ou se revela insuficiente, a força que o homem adquiriu transformar-se-á, cada vez mais, numa força de destruição” (A Europa de Bento na crise de culturas, p. 22). A humanidade actual não encontra numa moralidade subjectiva dos indivíduos a força moral de que tem necessidade para enfrentar as ameaças que pendem sobre ela.
Ruptura entre o presente e o futuro definitivo do homem
Através desta cisão cultural, o drama humano situa-se no horizonte fechado deste tempo e deste mundo («hoc saeculum»). O horizonte de eternidade, o único que anuncia a plena realização do homem – para nós, cristãos, inevitavelmente ligado a Jesus Cristo e à sua ressurreição – não tem lugar. É impressionante: são cada vez mais numerosos os nossos contemporâneos que deixaram de crer na vida eterna. Isto priva a nossa existência no tempo da sua profundidade e da sua dignidade, como experiência de esperança.
Se tudo passa e tudo termina, porquê apostar na perenidade dos valores definitivos? Se o nosso presente não faz unidade com o nosso futuro, então vivamos o dia-a-dia, aproveitemos o transitório, mudemos de rota sempre que isso nos pareça o mais conveniente no presente.
O já citado relatório do Conselho Pontifício da Cultura resume esta “profunda ruptura na transmissão da fé que conhecem as sociedades secularizadas” afirmando que “a Europa é marcada por um triplo ferimento: da memória, da imaginação e do sentido de pertença. A memória está ferida na medida em que a nova geração, que vive num imediato sem ligação ao passado, tem falta da experiência da fé e do sentido da história. A imaginação está ferida pela invasão de propostas televisivas medíocres, a que se junta a falta de contacto com os grandes artistas cristãos da história. O sentido de pertença está ferido devido a um verdadeiro desamor de muitos face à Igreja, a sua pátria, e também em relação à cultura cristã bimilenária do continente”.
Todas estas rupturas exprimem-se igualmente na cisão entre as instituições responsáveis pela formação: a família, a escola, a Igreja e a sociedade. Estas instituições que enquadram as crianças e os jovens contradizem, na prática, os valores transmitidos pela formação cristã. Por exemplo, quantas famílias, daquelas que ainda fazem baptizar os seus bebés, garantem a iniciação cristã das suas crianças?
D. José Policarpo, Cardeal Patriarca
in A conversão missionária da catequese. A situação e os desafios da missão hoje na Europa, Congresso Europeu da Catequese, Lisboa , 29.05.2008
Trad.: rm
Fonte: SNPC
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