Luiz Felipe Pondé, Folha de S. Paulo, 24/04/05
ESPECIAL PARA A FOLHA
Bento 16 é um intelectual. Homens bem intencionados, articulados, midiáticos, tímidos, honestos, “conservadores” ou “progressistas”, podem ou não ser intelectuais. Se o forem, a percepção que temos deles demandará maior esforço cognitivo - esta característica pode se tornar, muitas vezes, um problema para a informação e para o entendimento.
Alguns analistas já apontaram para o fato de que Bento 16 deverá ter dificuldades no relacionamento com a mídia e o “rebanho”. João Paulo 2º não era um intelectual. Aqui já surge uma diferença importante para aqueles que pensam que nada muda, pelo menos no plano da trama teológica teórica e prática, invisível a instrumentos grosseiros de análise. O perfil intelectual pode ser definido, entre outras formas, por uma tendência a ver o mundo de um modo mais complexo. A questão é: em qual dimensão este fato influencia na passagem de uma atividade essencialmente teórica e reflexiva para uma de cunho mais pastoral e dominada pela lógica empírica miúda e cotidiana?
Sabemos que a pastoral hoje em dia flerta abertamente com a “inteligência do marketing” e, por isso mesmo, assume a forma da razão publicitária, seja em seu conteúdo “progressista ou conservador” - há uma clara atmosfera de consciência empresarial da fé: quem converte mais? O que o pensamento de Ratzinger parece indicar é que o processo de contágio da religião cristã pelas manias do secularismo moderno pode ser detectado em várias frentes.
O novo papa não é um intelectual cujo mote é medo de não agradar. Numa atitude pastoral, esse traço parece ser contraditório, a menos que esteja imerso numa articulação teológica que o sustente e organize. A teologia de Ratzinger é uma crítica aberta à ditadura da modernidade e, neste processo, às “soluções” pseudo-religiosas (no entendimento dele) para “a questão religiosa”.
Santo Agostinho pode ser muito mais nosso contemporâneo do que o último guru espiritual correto ou o último teólogo transteológico. Chamá-lo de “conservador” é má fé (razão estratégica), barateamento da discussão ou simples falta de repertório. Mas, na “democracia real”, esse processo de barateamento pode ser estrutural.
Evidentemente que atitudes não se dão no vazio dos laços sociais. A democracia como comportamento generalizado, associada a uma economia calcada na idéia de produção industrial e regida pela lógica do desejo, parece tender, desde suas origens no século 19, para um cenário pouco dócil às necessidades estruturais e dinâmicas de um pensamento que não se faz facilitador: não é fácil encontrarmos no vaivém infernal da democracia moderna produtivista - isto é, orientada por um “ethos” da eficácia - os espaços que propiciam os movimentos delicados e sutis de uma reflexão que exige maior repertório metodológico e conceitual.
O risco de resvalarmos para a banalização é enorme: o novo papa foi nazista (quem não teria servido o exército então? Era uma guerra…). Ele é um conservador retrógrado que é contra mulheres e homossexuais. Relativizar dogmas, tudo bem, mas só na casa do vizinho! Não haverá perda no diálogo com os avanços da ciência? Como se andar em linha reta sempre para frente fosse evidente indicação de avanço e como se dialogar fosse sinônimo de submissão ao encantamento da lógica ruidosa da eficácia. A agenda moderna não será preterida?
Para Bento 16, a “agenda” não é moderna, mas sim eterna. Quem consegue lidar facilmente com uma categoria de tempo que por definição exclui e supera a noção empobrecida de temporalidade? Uma solução é fugir, fingindo que tudo é ideologia…
Na obra “O Sal da Terra” (Ed. Imago), de 1996, podemos ter alguns indícios de como Ratzinger pensa questões como essas, entre outras tantas. Obra já madura, nela temos a chance de ver de modo articulado e coloquial (trata-se de uma longa entrevista) a evolução de seu pensamento teológico no enfrentamento de diversas questões essenciais.
Uma experiência marcou a vida do novo papa: voltando para a Alemanha após o período do Vaticano 2º, e assumindo a atividade docente, um dia foi interrompido por alunos que tomaram seu microfone em meio à aula sem pedir licença. O professor Ratzinger ali percebeu que algo estava se passando e que cuidados eram necessários com o chamado processo de modernização.
Um dos temas caros à reflexão de Ratzinger é a dissolução da experiência litúrgica graças ao deslocamento do lugar da relação entre culto e comunidade dentro da dinâmica eclesial. Segundo ele, muitos católicos confundem a relação entre fé e prática litúrgica na medida em que parecem crer que o “formato” da liturgia é objeto de decisão comunitária, como numa pesquisa de opinião pública.
Essa temática é diretamente descendente da pressão pela dissolução das estruturas hierárquicas em favor de um “democratismo das bases”. Para Ratzinger, parece haver um “instinto antidiscernimento” na condição contemporânea. Não é o fiel o “ponto de partida” da experiência litúrgica, mas a Revelação, mediada pelos mistérios sacramentais.
O viés democratista das bases tende a perder de vista este fato, porque no fundo é fruto do processo dissolutivo do relativismo anômico (por isso opera em baixo discernimento) e do secularismo autoritário, e o resultado é a perda da espessura mística do culto em favor de uma semelhança com shows (no nosso caso) de música popular “ao alcance de todos”. Prova deste autoritarismo é o mal entendimento de que escolher formas “antigas” de liturgia (pré-conciliares, Vaticano 2º) seja signo de “reacionarismo”.
O rompimento da idéia de pastoral como sedução por atração também é fruto de sua reflexão teológica. Imagens como “oásis no deserto”, “fortaleza no alto”, “grãos de sal da terra”, todas remetem para um distanciamento da idéia de uma teologia “da Igreja triunfante”. Não operar dentro das categorias da razão publicitária - termo meu - pode tornar alguém quase irracional.
Para Ratzinger a antropologia agostiniana que vê o homem como um ser que gira ao redor de uma natureza danificada pelo pecado é muito mais empírica do que os modos de pseudodignidade antroponômicas. Isso dá um tom “pessimista” à sua reflexão antropológica, que diante da regra de “respeito às sensibilidades sociais”, parece uma heresia. O homem deve julgar a si próprio menos como agente de sua própria salvação e mais como agente de sua perda -não por um trauma masoquista, mas antes de tudo por propedêutica metodológica.
Atitudes como essa aparece também na sua crítica a preguiça travestida de “amor pela paz” de muitos bispos: segundo Ratzinger, o medo de conflitos leva muitos bispos e padres à preguiça mental e prática. Referindo-se ao seu tempo de bispo na Alemanha, ele reconhece como é difícil não se calar e optar pelo silêncio fácil. Trata-se do veneno silencioso que corrói a própria estrutura da comunidade. Inocula-se a preguiça em nome da paz.
Todavia, uma crítica como esta pode ser facilmente cooptada pela bancada secular da igreja (aqueles que pensam que a igreja deve buscar sua teologia nos livros de Marx, Feuerbach, Nietszche ou Foucault): essa chamada pelo enfrentamento dos conflitos é na realidade um discurso de poder, diriam os “socioteólogos”.
O interessante é que só o outro é que faz o discurso do poder: é o lado em que você está que determina se sua causa é justa ou manipuladora. Ratzinger recusa em bloco a “teoria do poder em toda parte” e a identifica como uma das formas de dissipação da capacidade humana de discernir as coisas. Se não há nada além do que “power politics”, não há nada a fazer.
Seu repetido discurso acerca da importância da liturgia para a teologia indica sua compreensão, dita em termos filosóficos, de que transformações ontológicas (ou existenciais) são operadas no momento litúrgico que abrem para o ser humano uma experiência de Deus. Quando o indivíduo vive uma religião que tende para mera instituição social, a liturgia se transforma em algo que repete o mundo secular “ad infinitum”.
A condenação do padre austríaco Gotthold Hasenhöttl é uma boa oportunidade para compreender suas reflexões no plano prático. Segundo Ratzinger, o erro de Hasenhöttl (dar comunhão a não batizados) era na realidade função de erro teológico: para ele, Deus não é uma realidade existente em si, mas um evento para encontros entre seres humanos.
Esse tipo de teologia dissipativa, está no foco de suas críticas ao relativismo teológico de autores como John Hick, entre outros, e nos leva às aporias do diálogo entre diferentes religiões. Ratzinger dirá que não há como não destituir o cristianismo de Cristo (cristianismo acristológico) se tivermos que aceitar realidades indistintas e cósmicas, panteístas, aos moldes da Índia.
As tentativas de manter a religião nos limites da razão natural e achar que Kant salvou o cristianismo, marcando as diferenças entre Deus (um ser fora das categorias a priori de sensibilidade) e Jesus (encarnado e, portanto, um ser limitado às categorias a priori da sensibilidade, e por isso puro fenômeno descartável teologicamente porque meramente empírico) é para Ratzinger erros semelhantes da teologia da libertação.
Uma característica do humanismo moderno é essa tendência de buscar referências extrabíblicas e fora da tradição cristã para a atividade hermenêutica ou exegética. Por exemplo, o feminismo deságua numa agenda que impõe à Bíblia conteúdos que nela inexistem ou simplesmente nega a validade bíblica em favor da emancipação secular. Para Ratzinger, alguém pode até pensar assim, mas nada há de cristão ou católico nisso, e o melhor é que “vá embora”.
O processo de dissipação do cristianismo a serviço da instalação de modelos orientais, chega, por exemplo, à assimilação do budismo como método de auto-erotismo pseudoespiritual, na medida em que o eu é uma fonte de gozo sem obrigações reais no mundo. Ratzinger pensa que muitos católicos hoje vêem a sua fé em desvantagem porque ela tem um discurso de responsabilidade muito explícito, e a sensibilidade contemporânea, fruto de sistemas de pensamento que escondem sua verdadeira filiação (os ídolos do mundo caído: amor pela matéria, pelo conhecimento vão e pelo orgulho), materializada, por exemplo, num canto pela sexualidade orgasmática e estéril, pouco fecunda, não agüenta tamanha pressão moral.
Quando ataca os instrumentos culturais como grandes sessões de rock’n'roll a serviço da fé, Ratzinger tem isso em mente: o cristianismo não é uma religião da liberação do ônus da consciência, mas o contrário, da consciência como instrumento que ilumina a percepção de Deus.
Uma outra frente de crítica é aos diversos tipos de hegelianismos, da história como lei de redenção até a transvaloração nietzscheana como salvação que passa pelo gozo infinito do eu. Ratzinger diz que espera que tenhamos aprendido como modelos de redenção baseados em revoluções violentas (como a do líder Barrabás, no evangelho, de Hitler, Stálin, Fidel etc.) só geram tragédias em escala gigantesca. “Leis da história” não existem, são uma bobagem do socialismo pseudocientífico, retórica a serviço da violência.
Quando teólogos distantes da espiritualidade da igreja se confundem e pensam que o Zeitgeist (espírito da época ou do tempo) é um critério possível para uma instituição que tem sua raiz no sobrenatural (por isso a história pode até ser matéria de preocupação, mas o “ponto de vista”, diria quase o objeto formal, é sempre sua participação no corpo místico, participação essa que é muito mais da ordem da liturgia, dos sacramentos, da vida em comunidade permeada por estes e pela experiência da Revelação), nascem híbridos como a teologia da libertação, que apesar de ter em si germes do cristianismo (a recusa da pobreza e da injustiça), acabam se transformando em mera facção socialista.
Estes teólogos caem em erros de utilizarem referenciais hermenêuticos que, no limite, produzem a exclusão de Deus. Na relação teórica entre teologia da libertação e marxismo, é aquela que é parasitária. O marxismo não precisa de qualquer teologia (mesmo a que está mais perto dele do que de Deus) para fazer seu trabalho (a não ser como conteúdo retórico). Confunde-se o carisma profético da igreja com uma teoria secular datada. Não há sintonia entre o tempo secular e a vocação profética, essa extemporaneidade é figura da eternidade em diálogo com o tempo.
As interpretações seculares de Deus, como a teologia da libertação, só podem degenerar em visões materialistas do tipo “a Alemanha está mais perto do Reino de Deus que o Brasil porque tem água encanada e distribuição de renda mais igualitária e escola pública”, ou “Deus é a natureza ou o Amor por tudo” -esta forma mais típica do cruzamento com espiritualidades da Nova Era.
As formas de relativismo que cruzam com um culto da subjetividade hedonista também são modos de neopaganização. No fundo, o indiscernimento relativista leva ao individualismo ou ao multiculturalismo oba-oba. Duas questões se cruzam aqui.
Uma que é a da exclusão do sofrimento, tudo é relativo menos meu prazer, e, no plano religioso, significa um deus que serve ao meu eu. Outra que é da própria dinâmica do relativismo que é sua aporia da tolerância por anomia conceitual: a idéia de que não há a possibilidade de que pessoas ou sistemas de idéias ou religiões estejam erradas é infantil. Não é por acaso que frases como “cada um é cada um” são instrumentos de suspensão de pensamento a serviço da preguiça, utilizados largamente por adolescentes irritados diante da demanda de discernimento.
De novo, paz e preguiça mesclados a serviço da anomia. O medo atávico de guerras religiosas nos condena a todos ao imobilismo intelectual. O fato de existirem várias religiões não implica que estejam todas certas. No caso específico do catolicismo, é interessante perceber como todas parecem melhor do que ela, ou merecem menos crítica do que ela. Senso comum é comum nesse assunto como critério suficiente de conhecimento. Diria até que basta falar mal da igreja, acrescentar um pouco de sexo e ter mulheres poderosas como heroínas, para se atingir o sucesso.
Em 1999, num discurso sobre a relação entre lei e ordem em Roma, Ratzinger lembrou seus anos de nacional-socialismo e comentou que era interessante como agora (após os anos 50), a idéia de se estabelecer critérios era vista como “ato fascista”, e que durante os anos do nazismo era o contrário: os cidadãos eram convocados a agir a partir de seus sentimentos “livres e verdadeiros” e não a respeitar as leis estabelecidas.
Vivemos hoje uma clara tendência a uma sensibilidade disseminada em critérios fluidos. Ratzinger vê como um sinal de dissolução o fato da moral hoje ser pensada a partir da lógica de somatório de opiniões, como um consenso de sensibilidades. Evidentemente que essa idéia se parece muito com a noção de que se trata de uma contabilidade de concupiscências estabelecendo contratos.
A teologia de Ratzinger não é um “creio porque é absurdo”, aos moldes de Tertuliano, mas “creio para compreender”, aos moldes de Agostinho. O aparente pessimismo pode ser apenas rigor. No fundo, há sentido, mas há que pensar e contar com a misericórdia de Deus. Os seres humanos gostam de ser acalentados na sua fragilidade estrutural. Quando pessoas nos dizem coisas duras, sofremos. Por isso hoje tendemos a optar por maus pedagogos, mas que mentem para nós, e deuses que nos obedecem em nossa volúvel espiritualidade à venda.
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